A memória está estritamente vinculada a coisas sólidas e lugares (quem nunca anotou lembretes, riscou um "x" na própria mão ou amarrou uma fitinha no dedo...?). A cidade não foge à regra. O papel dos prédios históricos é fazer esta “ponte” com o passado, gerando a agradável sensação de continuidade e proporcionando ao presente, seu verdadeiro sentido e significação.
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O processo “cumulativo” de épocas nas cidades pode ser muito saudável, quando há uma convivência pacífica de épocas, usos - e, porque não?- escalas.
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Para garantir a sensação de continuidade, como define a palavra, é necessário que haja de fato uma continuação. Neste caso, não se trata de preservar única e ardorosamente a arquitetura de um passado eleito como importante: apenas vernacular (como a Ouro Preto que suprimiu seu período eclético), ou apenas de uma posterior pretensa belle-époque, etc.
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O surgimento no século passado de um novo conceito de morar, com a introdução de estratégias e técnicas construtivas novas dentro de projetos Art Déco/protomodernos, e a posterior “vitória” do movimento moderno no campo da arquitetura e da arte, são fases importantes para que o momento atual seja perfeitamente compreendido e vivenciado.
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E a arquitetura moderna?
Como exemplo ilustrativo de que a falta de cuidado e continuidade dos prédios históricos nem sempre estão relacionados à estagnação do seu uso original, vejamos uma das mais significativas casas modernistas da cidade de Porto Alegre.
Casa Jorge C. D'Azevedo, na sua configuração original (fonte: GOLDMAN, Carlos Henrique: projetos residenciais de Edgard Albuquerque Graeff) e na atual (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010). Na comparação, percebe-se a substituição das esquadrias originais, com supressão do brise soleil, em prol do uso de esquadrias simples de madeira, encontradas em qualquer loja de materiais de construção.
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Localizada no bairro Moinhos de Vento de Porto Alegre, a Casa Jorge C. D'Azevedo foi construída na década de 50, projetada pelo Arquiteto Carlos Alberto de Holanda Mendonça. Vemos no projeto uma criteriosa adoção dos pontos da arquitetura moderna, com uso de pilotis, brise-soleil, fachada e planta livres. O impacto visual, com inspiração na escola carioca, era gerado pelo uso de brise-soleil vertical. A ousadia de suspender uma casa sob pilotis na Porto Alegre dos anos 50, certamente a destacava dos prédios residenciais predominantes na época, a maioria inspiradas no modelo californiano de edificação neo-colonial hispânica (por aqui conhecida como “estilo missões” – e curiosamente, estes começam hoje a serem vistos como ‘históricos’, ao contrário dos prédios modernistas e proto-modernos da mesma época, encarados como ‘comuns’).
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A manutenção desta e de outras casas, tornaria possível uma importante “ponte” com o passado, uma forma de comprovar a introdução da arquitetura moderna ao contexto porto-alegrense. Ilustra a chegada de um novo modo de morar fora do eixo Rio-São Paulo, nos anos 50; além de constituir-se um perfeito referencial teórico para a arquitetura gaúcha atual. Não fosse a lamentável mutilação que transformou este e vários outros prédios representativos para a arquitetura local, em meros produtos imobiliários.
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Talvez o exemplar modernista mais importante do Rio Grande do Sul: Palácio da Justiça de Porto Alegre, também dos anos 50 (Foto: Jorge Luís Stocker Jr.). Interessante projeto, vencedor de concurso, dos arquitetos Carlos Maximiliano Fayet e Luís Fernando Corona. Recentemente reformado sob orientação do primeiro (já falecido), de forma a atualizar para as demandas e também finalizar o projeto original, que não havia sido executado inteiramente conforme o proposto.
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Enquanto isso, continuamos a buscar apenas nas obras do Niemeyer, Lúcio Costa e Cia, a essência do modernismo brasileiro. Esquecemos de valorizar, estudar e perpetuar os exemplos locais, que com tanta dificuldade introduziram as inovações arquitetônicas nesta cidade.
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A memória acabou?
Felizmente não, pois a cidade ainda tem outros edifícios e casas que narram este período de introdução e auge da arquitetura moderna, tão profícuo em estratégias projetuais e avanços estéticos. São exemplos maiores, o Jockey Club, o Esplanada (do Arq. Fresnédo Siri), o Palácio da Justiça (Luís Fernando Corona e Carlos M. Fayet), o Jaguaribe (Luís Fernando Corona e Fernando Corona), entre outros. Impossível não citar as aventuras proto-modernas protagonizadas pelo "arquiteto" auto-didata Fernando Corona, que escapam à rigidez teórica do movimento moderno, mas são valiosas justamente pelo toque ‘autoral’ e pela gradual introdução de elementos modernos em prédios com um pé no art-decó ou neo-colonial.
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Casa projetada nos anos 50 pelo arquiteto Fernando Corona, encontra-se bem conservada em sua originalidade. Sua estética atende à demanda por ares californianos, próprios do neo-colonial/estilo missões, ao mesmo tempo que introduz elementos modernos, como os balanços, janelas 'corridas' e muxarabis da arquitetura colonial brasileira. (pavimento superior, com arcos, é intervenção posterior). (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)
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Por sua adequação à época em que foram concebidos, estética e tecnologicamente, o legado modernista deveria servir de inspiração para muitos arquitetos atuais. Profissionais que nada mais fazem além de repetir exaustivamente a fórmula pré-concebida do que os “clientes costumam querer”. Quem sabe assim, deixaríamos de ver a construção de centenas de prédios “sem linguagem”, meramente produtos imobiliários, que não representam nenhuma cultura, nenhum estágio tecnológico, nenhum conceito... Enquanto este tempo não chega, que tenhamos mais cuidado com o legado de qualidade que os períodos anteriores nos deixaram.
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Leia também:
Arquitextos: Escola Carioca e a Arquitetura Moderna em Porto Alegre (Luís Haas Luccas)
Livro: A arquitetura moderna em Porto Alegre