O meio do patrimônio cultural muitas vezes é pesado e repleto de ranço e mau humor. Há sempre alguém disposto a puxar o tapete, seja por motivos financeiros, políticos, ou até mesmo, pelo próprio "poder da palavra"(são os ditos "donos do patrimônio".)
Filmes como Toy Story 3 podem ser fonte riquíssima de interpretações lúdicas a respeito da importância da memória.(fonte: IMDB / Pixar Disney)
Em tempo de pluralidade de interpretações e de teorias, alguns conceitos apressados vão perdendo sua vez, as soluções rápidas e acríticas tomadas em outro contexto vão se mostrando ineficientes. Este ambiente líquido traz insegurança, mas também, um campo fértil e múltiplo para atuação. Nunca se viu tantos projetos de educação patrimonial, pesquisas, inventários e interesses voltados ao legado cultural. Apesar das muitas perdas e tristes episódios, um novo horizonte começa a se esboçar, graças aos trabalhos de "formiguinha" que começam a pipocar por aí, gerando tombamentos, inventários, rotas culturais e turísticas, centros de cultura, museus comunitários, e uma pluralidade de novos resultados interessantes.
Dentro dessa perspectiva, torna-se incompreensível o clima de ranço e baixa-estima mantido por alguns dos envolvidos na causa patrimonial. Buscamos com este artigo, dissolver um pouco desse peso, trazendo uma abordagem leve sobre o tema, brincando de certa forma, de problematizar questões patrimoniais a partir de produtos culturais.
Encontramos, despretenciosamente, interessantes referências a área de patrimônio cultural no roteiro de dois longa-metragens de animação. São eles Up - Altas Aventuras e Toy Story 3, ambos produzidos numa parceria da Pixar com a Disney. Como um contraponto local, incluímos o belíssimo curta-metragem Dona Cristina Perdeu a Memória, dirigido por Ana Luísa Azevedo (diretora do recente "Antes que o Mundo Acabe").
Atenção, os textos contém spoilers!
O longa-metragem de animação em 3d UP! - Altas Aventuras foi lançado no ano de 2009, tornando-se uma das maiores bilheterias do ano. O filme conta a história de Carl Fredericksen, um idoso viúvo que vive com a memória de sua falecida esposa Ellie. O longa apresenta logo de início uma espécie de "resumo" da história do casal, e de forma divertida, sensibiliza para a cumplicidade e doçura dos momentos compartilhados juntos. Vemos que os dois se conhecem durante brincadeiras em uma casa abandonada. Pelo apego sentimental, adquirem esta casa após o casamento, e a transformam em um lar aconchegante - exatamente como o planejado quando se conheceram ainda crianças.
A casa do sr. Carl flutuando pela cidade - descontextualizada pela nova configuração urbana, só resta "partir" para um mundo de sonhos (fonte: IMDB / Pixar Disney)
Triste por perceber que a sua amada jamais realizou o sonho de conhecer a "Cachoeira dos Sonhos", Carl sofre com as lembranças, e também com um conflito econômico. Cercado por um grande empreendimento imobiliário, Carl acaba se desentendendo com um representante da construtora que pretende comprar sua casa (última restante no quarteirão) para demolir. Irritado, acaba agredindo o trabalhador e é punido com um mandato de interdição. Querem levar o senhor para o asilo, mas este consegue fugir, fazendo a casa voar com o material da época em que vendia balões! Sai então em busca da Cachoeira como forma de realizar postumamente o desejo de vida de sua parceira.
O casal reforma a casa onde se conheceu, transformando num lar aconchegante (fonte: IMDB / Pixar Disney)
Neste começo, já vemos uma situação recorrente nas nossas cidades: com a falta de controle do gabarito, que deveria dar-se através dos planos diretores, as cidades transformam-se em "canteiro de obras". A questão se descentraliza do desinteresse na manutenção das casas antigas, e se direciona para o valor que os terrenos adquirem. Explicamos: a Prefeitura "libera" construções com muitos pavimentos em uma área caracterizada por residências unifamiliares, onde anteriormente não havia esta liberdade. Esses terrenos passam ntão, por uma valorização que supera em muito o valor que uma pequena construção pode suprir com sua área útil. Trocando em miúdos: a partir do momento em que são declarados, através do plano diretor, integrantes de uma zona com grande índice de aproveitamento (IA), o terreno passa a valer uma fábula, pela nova possibilidade de construção vertical com muitos pavimentos, e em consequência, muito lucro com a venda de várias unidades. A manutenção das residências unifamiliares, e entre elas, as casas históricas destas regiões, se torna economicamente insustentável.
O filme mostra, ainda, a difícil relação entre o senhor Fredericksen e o jovem escoteiro Russel. Frutos de épocas e mentalidades completamente diferentes, são "forçados" a conviver a partir do momento em que o persistente garoto é acidentalmente "sequestrado", quando o casa do sr. Carl levanta vôo e ele encontra-se na varanda. A relação dos dois se desenvolve aos poucos, passando por momentos bastante simbólicos visualmente, com destaque para a dupla "carregando" juntos a casa flutuante (o legado afetivo do sr. Fredericksen), amarrados a cordas.
A dupla carregando a casa até o local dos sonhos de Ellie. (fonte: IMDB / Pixar Disney)
Após uma sucessão de acontecimentos, a casa do sr. Fredericksen volta ao chão e, com a queda, fica completamente bagunçada. Triste, o senhor senta-se em meio a bagunça e contempla o álbum que a esposa havia criado quando criança. Com amargura, contempla a seção que havia ao final: "Coisas que irei fazer". A esposa não havia vivido a aventura que sonhava na cachoeira dos Sonhos, mas Carl surpreende-se ao deparar-se com o contraponto, uma série de fotos do casal em momentos felizes que passaram juntos. Ellie deixou a mensagem do que havia, de fato, "feito": vivido uma aventura! Cabe frisar que o sr. Fredericksen apenas voltou a contemplar este álbum (re-analisar?) devido a provável confusão de seu imaginário, após tantos acontecimentos e novidades que abalaram o mundo tal qual ele conhecia (abalo expresso visualmente na casa bagunçada). A memória funcionando como uma troca e reinterpretação do passado em decorrência do momento atual. Essa "revisão" se completa quando Carl decide livrar-se do "peso" do mobiliário, permitindo que a casa volte a flutuar: o esquecimento fazendo parte do processo de memória e reinterpretação, funcionando como "selecionador" do que pode e o que não pode fazer sentido hoje.
Ao final do filme, finalmente e após muitas aventuras partilhadas juntos, o sr. Carl Fredericksen e o garoto Russel tornam-se grandes amigos. Numa cena bastante emblemática, Carl entrega para o garoto o "distintivo Ellie" - na verdade apenas uma tampinha de refrigerante, para ele repleta de significados. Significados valorizados também pelo garoto, agora que tinham tanto em comum e compartilhavam sua história.
O legado confiado a nova geração - Toy Story 3 3D
O terceiro capítulo da saga Toy Story foi recentemente lançado, tomando partido da tecnologia 3D. O filme, no entanto, não abusa dos recursos visuais oferecidos por esta linguagem: esqueça as cenas de vôos rasantes e de objetos voando no espectador, tão comuns nos demais filmes recentemente lançados. O foco aqui é o roteiro, muito divertido mas sensível e tocante: de brincadeira, corre por aí a declaração de que a Pixar teria utilizado a tecnologia 3d apenas para que o público não tenha vergonha de chorar no cinema, com os olhos escondidos atrás dos óculos 3d!
Encarando as mudanças: Andy é desafiado a decidir o destino das "tralhas". (fonte: IMDB / Pixar Disney)
O longa conta com muitos momentos de grande carga emocional e caráter simbólico. Um deles diz respeito aos brinquedos, lembranças da infância, confinados numa "caixa de memórias". Os brinquedos fazem de tudo para ser vistos, mas nada funciona: eles não fazem mais sentido na vida do agora jovem Andy.
O difícil momento de contemplar o "passado" e definir seu destino. (fonte: IMDB / Pixar Disney)
Num momento crítico, de mudança de cotidiano, o garoto enfrenta o desafio de selecionar o que vai levar para a faculdade, o que vai descartar e o que irá guardar no porão. Ou seja: o que vai continuar fazendo parte de sua vida; as lembranças que ficarão intocáveis e escondidas, longe de reinterpretações e resignificações da vida diária; e o que pretende esquecer de vez.
Por um descuido, a sacola onde o garoto confina os brinquedos (com exceção de Woody, que pretende levar pra faculdade) acaba sendo confundida com lixo por sua mãe. Os brinquedos sentem-se agora descartados, e, às escondidas, colocam-se numa caixa que é doada para a creche Sunnyside. Neste local, são destinados como brinquedos numa sala de crianças muito pequenas, onde são praticamente "torturados". Os novos donos (ainda) não entendem aquele "legado" que receberam: mordem, quebram, sujam. Os brinquedos não fazem sentido pra quem ainda não tem referências na memória. Caíram em mãos despreparadas.
O que ainda faz sentido no momento atual? (fonte: IMDB / Pixar Disney)
Os brinquedos, procurando fugir daquele local onde estão presos, unem-se e conseguem, após alguns atritos, libertar-se. No entanto, por acidente vão parar novamente no lixo, sendo quase completamente incinerados. Salvam-se, no entanto, e conseguem voltar para a casa do garoto Andy a tempo de entrar na caixa de itens destinados a ficarem estocados no sótão.
Em seguida, depois de um bilhete escrito pelo brinquedo Woody, vem uma das cenas mais bonitas e tocantes do filme: o garoto toma coragem e decide doar aquele capítulo importante de sua infância para uma garotinha. Aqueles brinquedos não podem, de forma alguma, voltar a fazer sentido em sua própria vida, que entra em outra fase. Porém, ao invés de descartar ou enterrar no porão da memória, Andy deixa este legado cuidadosamente, para quem ele ainda pode ter importância! Relembrando sua infância, nomeia cada um dos brinquedos, deixando claro que a garota precisa "dar conta" de receber um legado tão importante pra ele (incluindo o boneco Woody, seu "melhor amigo" de infância).
E finalmente, os brinquedos (o legado afetivo do garoto) encontram novo dono (se tornam o legado afetivo, presente na vida cotidiana e atual de outra pessoa!).
Unindo gerações em Dona Cristina Perde a Memória
Um curta-metragem muito simples e tocante, fruto de um projeto da Casa de Cinema de Porto Alegre e dirigido pela gaúcha Ana Luísa Azevedo. Com o tempo da narrativa marcado visualmente pelo caminhar compassado de um patinho de brinquedo, o roteiro versa sobre os contatos do garoto Antônio com Dona Cristina. Interna de um lar de idosos, Dona Cristina sofre de perda de memória recente, o que a faz esquecer completamente de seus contatos anteriores com o garoto.
Separados por suas diferenças, o menino Antônio (Pedro Tergolina) e Dona Cristina (Lissy Brock). (fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre)
Confuso com o frequente esquecimento da senhora, Antônio diverte-se inventando novos nomes para si mesmo, enquanto tenta construir uma ponte de madeira para atravessar de bicileta uma pequena fenda do pátio. Aos poucos, porém, percebe que existe uma "lógica" por trás das memórias de dona Cristina, que embaralha informações verdadeiras com um toque de fantasia, como uma forma de tornar suas recordações reais de palpáveis (como quando confunde a história de sua família e seus nomes, atribuindo características de pessoas conhecidas a nomes fictícios e a outros internos do asilo).
Fechada em si mesmo e acuada pelo tratamento impessoal que recebe das enfermeiras, que a tratam como criança, a senhora ocupa seu tempo construindo a "barreira simbólica" que a divide do mundo e da geração atual. Porém, a partir dos contatos com Antônio, a senhora começa a descontruir essa barreira.
Antônio (Pedro Tergolina) "atravessa" a barreira construída por Dona Cristina (Lissy Brock). (fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre)
Ciente de suas limitações físicas, a senhora decide deixar para o menino Antônio todos seus "objetos de memória". Estes objetos asseguram a memória da senhora: com eles, é possível recordar de coisas passadas, que se tornariam cada vez mais nebulosas sem a presença física dessas "lembranças". Tal relação vem em encontro de tudo que dizemos frequentemente nos demais artigos: o legado material é importantíssimo, como meio de assegurar a manutenção da memória. Sem eles, a memória "perde-se" em si mesma e não é legada às novas gerações, e portanto, é desprovida de sentido para elas.
Ao "legar"/compartilhar suas lembranças com o menino Antônio, dona Cristina deixa para a nova geração um pouco de tudo aquilo que era importante para ela - e pede para que ele "guarde aquelas memórias", para o caso de ela esquecer: "Se eu precisar lembrar de alguma coisa, eu te procuro"!
Dona Cristina (Lissy Brock) confia seu legado ao menino Antônio (Pedro Tergolina). (fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre)
Eis o legado cultural em sua essência! E para completar o tocante caráter simbólico que pode ser extraído desta história,Dona Cristina constrói uma ponte, a partir do material da cerca que os separava (as diferenças). Com esta ajuda, e com o cuidado de quem sabe do valor afetivo dos objetos que carregava na cestinha da bicicleta, finalmente Antônio consegue atravessar a ponte sem cair! As gerações atuais, certamente, tem muito a aprender com as "donas Cristinas" que existem por aí. Somente com as "pontes" construídas através das próprias diferenças de trajetória e de contextos, a geração atual poderá deixar de cair e se espatifar, vítima da própria inexperiência que conduz aos frequentes erros!
Munido do legado de Dona Cristina (Lissy Brock), Antônio (Pedro Tergolina) deixa de cair. (fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre)
Estas breves e despretenciosas análises não esgotam o tema, mas esperamos, possam ser ponto de partida para que novos olhares sejam lançados aos diversos produtos culturais com os quais temos contato (música, filmes, novelas...?) Patrimônio cultural não é apenas o saber acadêmico teórico existente nos livros, é parte do coditiano, das memórias e emoções. Por esta importância, está representado em muitos setores de nossas vidas!
Veja também:
- Assista o curta Dona Cristina perdeu a Memória no Porta Curtas.