terça-feira, 29 de junho de 2010

Questões patrimoniais em Up - Altas Aventuras, Toy Story 3 e Dona Cristina Perdeu a Memória

O meio do patrimônio cultural muitas vezes é pesado e repleto de ranço e mau humor. Há sempre alguém disposto a puxar o tapete, seja por motivos financeiros, políticos, ou até mesmo, pelo próprio "poder da palavra"(são os ditos "donos do patrimônio".)


Filmes como Toy Story 3 podem ser fonte riquíssima de interpretações lúdicas a respeito da importância da memória.(fonte: IMDB / Pixar Disney)

Em tempo de pluralidade de interpretações e de teorias, alguns conceitos apressados vão perdendo sua vez, as soluções rápidas e acríticas tomadas em outro contexto vão se mostrando ineficientes. Este ambiente líquido traz insegurança, mas também, um campo fértil e múltiplo para atuação. Nunca se viu tantos projetos de educação patrimonial, pesquisas, inventários e interesses voltados ao legado cultural. Apesar das muitas perdas e tristes episódios, um novo horizonte começa a se esboçar, graças aos trabalhos de "formiguinha" que começam a pipocar por aí, gerando tombamentos, inventários, rotas culturais e turísticas, centros de cultura, museus comunitários, e uma pluralidade de novos resultados interessantes.

Dentro dessa perspectiva, torna-se incompreensível o clima de ranço e baixa-estima mantido por alguns dos envolvidos na causa patrimonial. Buscamos com este artigo, dissolver um pouco desse peso, trazendo uma abordagem leve sobre o tema, brincando de certa forma, de problematizar questões patrimoniais a partir de produtos culturais.

Encontramos, despretenciosamente, interessantes referências a área de patrimônio cultural no roteiro de dois longa-metragens de animação. São eles Up - Altas Aventuras e Toy Story 3, ambos produzidos numa parceria da Pixar com a Disney. Como um contraponto local, incluímos o belíssimo curta-metragem Dona Cristina Perdeu a Memória, dirigido por Ana Luísa Azevedo (diretora do recente "Antes que o Mundo Acabe").

Atenção, os textos contém spoilers!

A Especulação Imobiliária e a memória afetiva em Up! - Altas Aventuras

O longa-metragem de animação em 3d UP! - Altas Aventuras foi lançado no ano de 2009, tornando-se uma das maiores bilheterias do ano. O filme conta a história de Carl Fredericksen, um idoso viúvo que vive com a memória de sua falecida esposa Ellie. O longa apresenta logo de início uma espécie de "resumo" da história do casal, e de forma divertida, sensibiliza para a cumplicidade e doçura dos momentos compartilhados juntos. Vemos que os dois se conhecem durante brincadeiras em uma casa abandonada. Pelo apego sentimental, adquirem esta casa após o casamento, e a transformam em um lar aconchegante - exatamente como o planejado quando se conheceram ainda crianças.


A casa do sr. Carl flutuando pela cidade - descontextualizada pela nova configuração urbana, só resta "partir" para um mundo de sonhos (fonte: IMDB / Pixar Disney)

Triste por perceber que a sua amada jamais realizou o sonho de conhecer a "Cachoeira dos Sonhos", Carl sofre com as lembranças, e também com um conflito econômico. Cercado por um grande empreendimento imobiliário, Carl acaba se desentendendo com um representante da construtora que pretende comprar sua casa (última restante no quarteirão) para demolir. Irritado, acaba agredindo o trabalhador e é punido com um mandato de interdição. Querem levar o senhor para o asilo, mas este consegue fugir, fazendo a casa voar com o material da época em que vendia balões! Sai então em busca da Cachoeira como forma de realizar postumamente o desejo de vida de sua parceira.



O casal reforma a casa onde se conheceu, transformando num lar aconchegante (fonte: IMDB / Pixar Disney)

Neste começo, já vemos uma situação recorrente nas nossas cidades: com a falta de controle do gabarito, que deveria dar-se através dos planos diretores, as cidades transformam-se em "canteiro de obras". A questão se descentraliza do desinteresse na manutenção das casas antigas, e se direciona para o valor que os terrenos adquirem. Explicamos: a Prefeitura "libera" construções com muitos pavimentos em uma área caracterizada por residências unifamiliares, onde anteriormente não havia esta liberdade. Esses terrenos passam ntão, por uma valorização que supera em muito o valor que uma pequena construção pode suprir com sua área útil. Trocando em miúdos: a partir do momento em que são declarados, através do plano diretor, integrantes de uma zona com grande índice de aproveitamento (IA), o terreno passa a valer uma fábula, pela nova possibilidade de construção vertical com muitos pavimentos, e em consequência, muito lucro com a venda de várias unidades. A manutenção das residências unifamiliares, e entre elas, as casas históricas destas regiões, se torna economicamente insustentável.

O filme mostra, ainda, a difícil relação entre o senhor Fredericksen e o jovem escoteiro Russel. Frutos de épocas e mentalidades completamente diferentes, são "forçados" a conviver a partir do momento em que o persistente garoto é acidentalmente "sequestrado", quando o casa do sr. Carl levanta vôo e ele encontra-se na varanda. A relação dos dois se desenvolve aos poucos, passando por momentos bastante simbólicos visualmente, com destaque para a dupla "carregando" juntos a casa flutuante (o legado afetivo do sr. Fredericksen), amarrados a cordas.


A dupla carregando a casa até o local dos sonhos de Ellie. (fonte: IMDB / Pixar Disney)

Após uma sucessão de acontecimentos, a casa do sr. Fredericksen volta ao chão e, com a queda, fica completamente bagunçada. Triste, o senhor senta-se em meio a bagunça e contempla o álbum que a esposa havia criado quando criança. Com amargura, contempla a seção que havia ao final: "Coisas que irei fazer". A esposa não havia vivido a aventura que sonhava na cachoeira dos Sonhos, mas Carl surpreende-se ao deparar-se com o contraponto, uma série de fotos do casal em momentos felizes que passaram juntos. Ellie deixou a mensagem do que havia, de fato, "feito": vivido uma aventura! Cabe frisar que o sr. Fredericksen apenas voltou a contemplar este álbum (re-analisar?) devido a provável confusão de seu imaginário, após tantos acontecimentos e novidades que abalaram o mundo tal qual ele conhecia (abalo expresso visualmente na casa bagunçada). A memória funcionando como uma troca e reinterpretação do passado em decorrência do momento atual. Essa "revisão" se completa quando Carl decide livrar-se do "peso" do mobiliário, permitindo que a casa volte a flutuar: o esquecimento fazendo parte do processo de memória e reinterpretação, funcionando como "selecionador" do que pode e o que não pode fazer sentido hoje.

Ao final do filme, finalmente e após muitas aventuras partilhadas juntos, o sr. Carl Fredericksen e o garoto Russel tornam-se grandes amigos. Numa cena bastante emblemática, Carl entrega para o garoto o "distintivo Ellie" - na verdade apenas uma tampinha de refrigerante, para ele repleta de significados. Significados valorizados também pelo garoto, agora que tinham tanto em comum e compartilhavam sua história.

O legado confiado a nova geração - Toy Story 3 3D


O terceiro capítulo da saga Toy Story foi recentemente lançado, tomando partido da tecnologia 3D. O filme, no entanto, não abusa dos recursos visuais oferecidos por esta linguagem: esqueça as cenas de vôos rasantes e de objetos voando no espectador, tão comuns nos demais filmes recentemente lançados. O foco aqui é o roteiro, muito divertido mas sensível e tocante: de brincadeira, corre por aí a declaração de que a Pixar teria utilizado a tecnologia 3d apenas para que o público não tenha vergonha de chorar no cinema, com os olhos escondidos atrás dos óculos 3d!


Encarando as mudanças: Andy é desafiado a decidir o destino das "tralhas". (fonte: IMDB / Pixar Disney)

O longa conta com muitos momentos de grande carga emocional e caráter simbólico. Um deles diz respeito aos brinquedos, lembranças da infância, confinados numa "caixa de memórias". Os brinquedos fazem de tudo para ser vistos, mas nada funciona: eles não fazem mais sentido na vida do agora jovem Andy.


O difícil momento de contemplar o "passado" e definir seu destino. (fonte: IMDB / Pixar Disney)

Num momento crítico, de mudança de cotidiano, o garoto enfrenta o desafio de selecionar o que vai levar para a faculdade, o que vai descartar e o que irá guardar no porão. Ou seja: o que vai continuar fazendo parte de sua vida; as lembranças que ficarão intocáveis e escondidas, longe de reinterpretações e resignificações da vida diária; e o que pretende esquecer de vez.

Por um descuido, a sacola onde o garoto confina os brinquedos (com exceção de Woody, que pretende levar pra faculdade) acaba sendo confundida com lixo por sua mãe. Os brinquedos sentem-se agora descartados, e, às escondidas, colocam-se numa caixa que é doada para a creche Sunnyside. Neste local, são destinados como brinquedos numa sala de crianças muito pequenas, onde são praticamente "torturados". Os novos donos (ainda) não entendem aquele "legado" que receberam: mordem, quebram, sujam. Os brinquedos não fazem sentido pra quem ainda não tem referências na memória.
Caíram em mãos despreparadas.


O que ainda faz sentido no momento atual? (fonte: IMDB / Pixar Disney)

Os brinquedos, procurando fugir daquele local onde estão presos, unem-se e conseguem, após alguns atritos, libertar-se. No entanto, por acidente vão parar novamente no lixo, sendo quase completamente incinerados. Salvam-se, no entanto, e conseguem voltar para a casa do garoto Andy a tempo de entrar na caixa de itens destinados a ficarem estocados no sótão.
Em seguida, depois de um bilhete escrito pelo brinquedo Woody, vem uma das cenas mais bonitas e tocantes do filme: o garoto toma coragem e decide doar aquele capítulo importante de sua infância para uma garotinha. Aqueles brinquedos não podem, de forma alguma, voltar a fazer sentido em sua própria vida, que entra em outra fase. Porém, ao invés de descartar ou enterrar no porão da memória, Andy deixa este legado cuidadosamente, para quem ele ainda pode ter importância! Relembrando sua infância, nomeia cada um dos brinquedos, deixando claro que a garota precisa "dar conta" de receber um legado tão importante pra ele (incluindo o boneco Woody, seu "melhor amigo" de infância).
E finalmente, os brinquedos (o legado afetivo do garoto) encontram novo dono (se tornam o legado afetivo, presente na vida cotidiana e atual de outra pessoa!).


Unindo gerações em Dona Cristina Perde a Memória


Um curta-metragem muito simples e tocante, fruto de um projeto da Casa de Cinema de Porto Alegre e dirigido pela gaúcha Ana Luísa Azevedo. Com o tempo da narrativa marcado visualmente pelo caminhar compassado de um patinho de brinquedo, o roteiro versa sobre os contatos do garoto Antônio com Dona Cristina. Interna de um lar de idosos, Dona Cristina sofre de perda de memória recente, o que a faz esquecer completamente de seus contatos anteriores com o garoto.


Separados por suas diferenças, o menino Antônio (Pedro Tergolina) e Dona Cristina (Lissy Brock). (fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre)

Confuso com o frequente esquecimento da senhora, Antônio diverte-se inventando novos nomes para si mesmo, enquanto tenta construir uma ponte de madeira para atravessar de bicileta uma pequena fenda do pátio. Aos poucos, porém, percebe que existe uma "lógica" por trás das memórias de dona Cristina, que embaralha informações verdadeiras com um toque de fantasia, como uma forma de tornar suas recordações reais de palpáveis (como quando confunde a história de sua família e seus nomes, atribuindo características de pessoas conhecidas a nomes fictícios e a outros internos do asilo).

Fechada em si mesmo e acuada pelo tratamento impessoal que recebe das enfermeiras, que a tratam como criança, a senhora ocupa seu tempo construindo a "barreira simbólica" que a divide do mundo e da geração atual. Porém, a partir dos contatos com Antônio, a senhora começa a descontruir essa barreira.


Antônio (Pedro Tergolina) "atravessa" a barreira construída por Dona Cristina (Lissy Brock). (fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre)

Ciente de suas limitações físicas, a senhora decide deixar para o menino Antônio todos seus "objetos de memória". Estes objetos asseguram a memória da senhora: com eles, é possível recordar de coisas passadas, que se tornariam cada vez mais nebulosas sem a presença física dessas "lembranças". Tal relação vem em encontro de tudo que dizemos frequentemente nos demais artigos: o legado material é importantíssimo, como meio de assegurar a manutenção da memória. Sem eles, a memória "perde-se" em si mesma e não é legada às novas gerações, e portanto, é desprovida de sentido para elas.

Ao "legar"/compartilhar suas lembranças com o menino Antônio, dona Cristina deixa para a nova geração um pouco de tudo aquilo que era importante para ela - e pede para que ele "guarde aquelas memórias", para o caso de ela esquecer: "Se eu precisar lembrar de alguma coisa, eu te procuro"!


Dona Cristina (Lissy Brock) confia seu legado ao menino Antônio (Pedro Tergolina). (fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre)

Eis o legado cultural em sua essência! E para completar o tocante caráter simbólico que pode ser extraído desta história,Dona Cristina constrói uma ponte, a partir do material da cerca que os separava (as diferenças). Com esta ajuda, e com o cuidado de quem sabe do valor afetivo dos objetos que carregava na cestinha da bicicleta, finalmente Antônio consegue atravessar a ponte sem cair! As gerações atuais, certamente, tem muito a aprender com as "donas Cristinas" que existem por aí. Somente com as "pontes" construídas através das próprias diferenças de trajetória e de contextos, a geração atual poderá deixar de cair e se espatifar, vítima da própria inexperiência que conduz aos frequentes erros!



Munido do legado de Dona Cristina (Lissy Brock), Antônio (Pedro Tergolina) deixa de cair. (fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre)

Estas breves e despretenciosas análises não esgotam o tema, mas esperamos, possam ser ponto de partida para que novos olhares sejam lançados aos diversos produtos culturais com os quais temos contato (música, filmes, novelas...?) Patrimônio cultural não é apenas o saber acadêmico teórico existente nos livros, é parte do coditiano, das memórias e emoções. Por esta importância, está representado em muitos setores de nossas vidas!

Veja também:

- Assista o curta Dona Cristina perdeu a Memória no Porta Curtas.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Motivos para preservação do patrimônio e as destruições em Novo Hamburgo (RS)

Com políticas de preservação ineficazes ou inexistentes, edificações valiosas que identificam a região de imigração alemã do Rio Grande do Sul sucubem às pressões do mercado imobiliário.
ATENÇÃO: ESTE ARTIGO NÃO É CONTEÚDO LIVRE E SÓ PODE SER REPRODUZIDO TOTAL OU PARCIALMENTE SOB AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DOS AUTORES.
Preservar não (apenas) pelo belo, mas pelo conteúdo


Casa demolida em junho/2010, sob aprovação do poder público, no centro de Novo Hamburgo: uma das pioneiras do padrão volumétrico que marcaria as colônias alemãs e que surgiu na cidade. (foto: Jorge Luís Stocker Jr.)
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O patrimônio cultural brasileiro têm sido depredado e destruído dia após dia. Quando muito, ouvem-se lamúrias que buscam valorizar a "beleza"dos prédios antigos, em contraponto à padronização e falta de senso artístico da produção atual. Porém, mais do que um "regojizo" para o olhar, os prédios antigos desempenham muitas funções importantes dentro do tecido urbano.
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A mais importante das funções talvez seja a sua própria materialidade como "documento histórico". O prédio como um todo pode ser analisado de forma a encontrar respostas e perguntas sobre determinados períodos - as soluções construtivas revelam a procedência do conhecimento técnico e aspectos culturais da sociedade que o construiu, bem como o estágio de evolução tecnológica. Já a organização espacial diz muito sobre o modo de vida, aspectos sociais relevantes, entre outras. Até mesmo as modificações dos prédios através dos tempos, podem ser ricas fontes sobre as mudanças de valores estéticos, sociais e como eles se manifestaram na construção.
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Maquetes (reais ou virtuais), levantamentos, fotografias: nada pode substituir o valor de um prédio histórico na sua integridade, justamente por ser uma fonte não terceirizada, da qual podemos extrair informações e interpretações diretamente, sem resíduos interpretativos ou erros acumulados.
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Exemplo de conjunto importante, abandonado pelos olhares da sociedade. Situa-se na rua Marcílio Dias, em Novo Hamburgo (RS). Apesar do seu inestimável valor histórico, as casas deste padrão volumétrico típico das regiões de imigração alemã são desprezadas, e por este motivo, constantemente demolidas ao ponto de estarem próximas do desaparecimento. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)
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Considerando a cidade, novamente os prédios históricos desempenham importante papel, ainda que estejam deslocados de um conjunto homogêneo e isolados em suas características de época. Eles são responsáveis pela sensação de continuidade, esta "ponte" que nos permite conhecer e reconhecer o passado, tendo assim segurança para viver o atual e o futuro. Esta sensação agradável deriva da facilidade de entendimento: tudo aquilo que pode ser entendido e linearizado nos traz mais segurança. Uma cidade sem referenciais (sejam marcos históricos ou contemporâneros, monumentos, etc.) é carente de identidade, e traz por isto insegurança, dificuldades de localização, além da falta de "apego" pelo local de morada.
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É possível, através da preservação de exemplares autênticos, datar de forma confiável a existência de determinadas vias e sua configuração estética e social em determinadas épocas.
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O bem histórico é insubstituível na sua condição de documento
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É recorrente que, na atualidade, se faça amplos levantamentos históricos e fotográficos, além de séries de entrevistas orais que procuram "resgatar" a história das cidades. Desta forma, deixa-se "vestígios" e registros para posteriores pesquisas, visto que é provável a perda definitiva destas memórias e do aspecto destes prédios e lugares. Instrumentos de preservação previstos constitucionalmente, os inventários muitas vezes tem sido empregados com esta função reduzida de "deixar registros".
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O mais triste de tudo é que sabemos: história escrita e interpretada é sim, importantíssima, porém, não faz parte do cotidiano da população. Assim como "a cura para o câncer" não faz parte da pauta e do dia-a-dia de todos os moradores da cidade, também o estudo da história e seus meandros é irrelevante para estas pessoas. A memória da dona Maria, de fato e infelizmente, não vai interessar de forma alguma a dona Joana.
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O valor do patrimônio também reside no seu significado atual
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E é aí que reside um dos maiores valores do patrimônio cultural material: Ele pertence sim a um mundo que já não existe, nasceu no passado - porém, pode fazer sentido e pode ser vivenciado no mundo presente!
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A continuidade do patrimônio e sua inclusão no cotidiano da população torna possível que ele continue fazendo sentido através dos tempos, "referendando" sua própria conservação. Criando estes vínculos entre a sociedade atual e o legado pretérito, o passado passa a participar da vida cotidiana, e não apenas dos estudos históricos do meio acadêmico. Novamente relembramos que fotografias, maquetes, textos e vídeos podem ser analisados, mas nunca vivenciados como o patrimônio conservado em sua integridade.
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Uma das casas pioneiras neste padrão volumétrico, a Casa Richter é atualmente mantida de forma exemplar pelos proprietários. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr.)
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A demolição de um bem histórico pela mera pressão imobiliária, apesar de uma constante, não pode continuar sendo encarado como rotineiro e comum. O risco é o bem-estar da cidade como um todo e a fragilização de sua identidade: não apenas se perde um "belo prédio antigo", mas queima-se definitivamente uma série de informações possíveis. Perde-se, ainda, uma possibilidade de vínculo afetivo dos moradores com as raízes culturais do município.
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As casas germânicas da Colônia Alemã de São Leopoldo
(conhecidas como: casas de frontão recortado, casas de telhado simétrico, casas de sótão-frontão)

Ainda inexpressivos na bibliografia existente, e com aspectos e peculiaridades ansiando um estudo completo e adequado, as casas construídas na colônia alemã no período aproximadamente compreendido entre a década de 10 e o início da década de 40, tem sido sistematicamente destruídas.
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Antiga sociedade Frohsin, projetada pelo arquiteto alemão Theo Wiederspahn em 1909, é prova da influência da linguagem eclética erudita na difusão de uma arquitetura da germanidade. (foto: Elis Regina Berndt/2009)
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Alinhadas em certos aspectos com o ideário eclético, estas casas provavelmente foram influenciadas pela presença maciça de profissionais arquitetos e engenheiros de formação alemã na região de Porto Alegre deste período. São legítimas "construções da germanidade", pretendiam-se teuto-brasileiras na sua aparência. Apresentam uma inconfundível volumetria, marcada pela inclinação dos telhados (com consequente uso da área como sótão).
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O deslocamento da "fachada principal", do lado maior para o lado menor, diferencia esta arquitetura da praticada em áreas de pura influência luso-brasileira. O oitão do telhado é valorizado, normalmente com uso de platibandas que constituem-se um marcante frontão - lembrando algumas vezes as soluções ecléticas para meios urbanos medievais, onde a estreiteza dos lotes impossibilita um aproveitamento mais horizontal.
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Um dos poucos conjuntos homogêneos ainda existentes, apesar da desfiguração de algumas partes, na Av. São Miguel de Dois Irmãos (RS). Em primeiro plano, a casa Konradt. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)
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As variações são muitas, existindo exemplares extremamente decorados - alguns com elementos eruditos, outros, com interpretações nitidamente vernaculares; e também exemplares extremamente despojados e geometrizantes, sintonizados, com algum atraso, às vanguardas européias.
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Essa arquitetura relaciona-se com acontecimentos pré e pós primeira Guerra Mundial, e provavelmente, com o pangermanismo. e, praticamente, desaparece quando eclode a Segunda Guerra Mundial (e a consequente campanha maciça de nacionalização, repressão à cultura germânica e muitos outros episódios traumáticos que seguem mal contados e sempre omitidos). Esta "repressão nacionalista" é a provável causa do abandono moral destas casas, e seu esquecimento como portadoras de um conteúdo simbólico (o germanismo) e histórico (interpretação local do eclético).
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Os exemplares que seguem existindo, são no geral desvalorizados, desprezados em inventários e omitidos em listas de tombamentos. O poder público de cidades onde estas casas foram o "padrão" por décadas - como Campo Bom, Sapiranga, Ivoti e Novo Hamburgo - mostram-se indiferentes a sua importância, ignorando os poucos exemplares existentes e permitindo sua sumária demolição.
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Nos poucos casos em que foram recentemente valorizados alguns exemplares, isto se deve muito mais ao seus aspectos históricos (ter sido importante entreposto comercial, como no caso da Casa Amarela de Ivoti, por exemplo) do que um real conhecimento e valorização do inegável caráter simbólico.
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Construída em 1949 - curiosamente, pelo menos 03 anos após o "fim da arquitetura teuto-brasileira" declarada pelo arquiteto Gunter Weimer em seu trabalho Arquitetura Erudita da Imigração Alemã. Situado em Jammerthal, interior de Picada Café, este exemplar bastante tardio ilustra a penetração da volumetria e das formas deste estilo pela população em geral, sua aplicação em prédios expontâneos e a perenidade que teve em locais de menos repressão nacionalista. (Foto: Elis Regina Berndt/ Março 2010)
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O berço deste patrimônio e sua destruição - Novo Hamburgo e arredores
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Segundo o historiador Jean Roche, estas casas (que numa rápida análise, denominou "casas de telhado simétrico") teriam surgido em Novo Hamburgo. A informação, sem fontes, parece se confirmar pela datação das casas ainda encontradas (e vêm aí, reforçada, a importância da preserva dos prédios como documentos): a mais antiga encontrada por nós data de 1903. Trata-se da Casa Richter, que ainda não se afasta de forma tão óbvio da arquitetura luso-brasileira, mas já apresenta uma volumetria característica. Mais tarde, com o aperfeiçoamento do padrão, os telhados se tornariam ainda mais inclinados e a presença da janela central do sótão, ainda mais pronunciada.
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A demolição deste legado
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Engana-se quem pensa que a desvalorização do patrimônio das imigrações restringiu-se ao período da campanha nacionalista da Ditadura. Muitos dos últimos e importantes exemplares deste acervo tem sido demolidos nos últimos anos, alheios ao desenvolvimento turístico e desprezado pelos inventários culturais.
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Casa inteiramente demolida no mês de junho de 2010 no centro de Novo Hamburgo. Construída em 1915, consistia em uma das mais antigas ainda existentes deste padrão, e uma das poucas praticamente ainda intocadas por modificações posteriores. (foto: Jorge Luís Stocker Jr. / 2009)
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Um dos primeiros exemplares deste padrão foi recentemente demolido em Novo Hamburgo. A casa, cuja datação da fachada informava sua construção em 1913, considerou-se desvalorizada por seu mau estado de conservação. Sem quaisquer protestos de nenhum setor da sociedade, este inestimável patrimônio foi rapidamente demolido sob acato da lei.
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Casa Moraes, nas proximidades do sítio histórico de Hamburgo Velho, inteiramente demolida no último ano. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2008)
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Aliás, esta tem sido a característica comum aos recentes casos de dano ao patrimônio cultural em toda região: contrariando o princípio dos direitos difusos (entre eles, o interesse cultural da sociedade na continuidade destes prédios, o potencial turístico, entre outros), as demolições são legalizadas e referendadas por conselhos (que infelizmente, apesar do esforço, são pressionados e engessados pelo mercado imobiliário, interesses políticos e falta de apoio das entidades), órgãos preservacionistas, e pelo próprio poder público - a quem cabe, constitucionalmente, a tutela e preservação deste patrimônio.
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Localização da casa demolida, em imagem de 1952. (fonte: Acervo Gilberto Winter - www.bauderecordacoes.com.br)
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Com a autorização da própria lei, torna-se um ataque ao patrimônio cultural cometido a olhos vistos e acobertado pela legislação ineficiente e pela população desinteressada e ignorante de seus direitos e deveres. Ainda há quem atrasa-se no lento raciocínio de que constitui-se patrimônio histórico apenas os bens devidamente tombados.
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Para estes, a citação abaixo poderia ser bastante esclarecedora:

É perfeitamente cabível a proteção ao bem de valor cultural, esteja ou não tombado. Um bem pode ter acentuado valor cultural, mesmo que ainda não reconhecido ou até mesmo se negado pelo administrador. Como vimos, o tombamento é ato declaratório e não constitutivo desse valor: pressupõe esse valor; não é o valor cultural que decorre do tombamento.

Hugo Nigro Mazzilli (“A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo”, Ed. Saraiva, 17ª ed., SP 2004, p. 20)


Casa Trenz, de 1917, também foi recentemente demolida, em prejuízo da memória do município. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2008)
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As casas, que comprovavam a ligação de Novo Hamburgo com o advento deste tipo de construção, que se tornou padrão e marcou o visual de todas as colônias alemãs, simplesmente desaparecem para dar lugar a um prédio qualquer da rotina imobiliária. Fica ferida e perpetuamente danificada, assim, a própria IDENTIDADE do município de Novo Hamburgo.
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Comprovam esta lenta agonia outras recentes destruições: as casas Trenz, Fensterseifer e Moraes, todas integrantes do Inventário provisório e inteiramente demolidas. Constituíam-se, em alguns casos, no último testemunho histórico deste período em toda a rua ou no trecho em que se situavam e, certamente, seu desaparecimento empobrece o meio urbano do município, bem como invibiliza futuras pesquisas que procurem mapear este padrão construtivo.
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Casa Fensterseifer, de 1925, já em processo de demolição. Inteiramente demolida em Maio/2010. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr.)

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Texto: Jorge Luís Stocker Jr.
Imagens: Elis Regina Berndt e Jorge Luís Stocker Jr.

Veja também:

# Gunter Weimer: Arquitetura Erudita da Imigração Alemã (livro)
# Fotos de casas com este padrão volumétrico.

ATENÇÃO! NOSSOS ARTIGOS E IMAGENS ATUAIS NÃO SÃO CONTEÚDO LIVRE, E NÃO PODEM SER REPRODUZIDOS SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA.