quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Por que tem valor? Discutindo os critérios para a seleção de bens históricos - Parte I

Em qualquer tipo de estudo ou trabalho relacionado ao patrimônio construído, costuma ser nítida a ausência de critérios rígidos utilizados para afirmar, de modo definitivo, que um bem histórico é portador ou não de valores que determinem a necessidade de sua preservação. Deixando de lado qualquer tipo de dogmatismo, e munindo-se de conhecimentos, sensibilidade e principalmente bom senso, pode ser possível chegar a um resultado que seja o mais satisfatório possível.

Casa de caráter historicista, bastante tardia (1949), localizada entre Jammerthal e Joaneta, em Picada Café (RS): seu valor histórico poderia eventualmente ser contestado pela aplicação tardia destas formas históricas então já ultrapassadas. Mas esta adoção tardia de formas e da volumetria típica dos anos 10-30 nas cidades mais desenvolvidas de imigração alemã, pode ser bastante significativa historicamente: uma casa de caráter tão germânico, em plena campanha de nacionalização, e tão tradicional, em tempos de modernização, só seria possível em lugares muito isolados geograficamente. (Foto: Elis Regina Berndt/ Março 2010)

O patrimônio histórico construído tem uma inegável importância para as cidades, assunto que já discutimos em diversos artigos do Die Zeit. No entanto, como definir o que, de fato, é patrimônio? É nítido que não devemos nos restringir apenas aos bens históricos já tombados ou indicados para preservação. Afinal, o tombamento não determina o valor de um bem, apenas o declara oficialmente. Mas então, quais edificações são, de fato, portadoras de valores que a tornem merecedoras de proteção?

Casa neo-colonial, uma das últimas das tantas que caracterizaram o centro de Torres (RS): terá algum significado pra cidade? O sufocamento da casa pelas edificações lindeiras antecipa seu destino. (foto: Jorge Luís Stocker Jr/ Janeiro 2010)


Primeiramente, a única certeza que podemos ter é que não existe nenhuma resolução definitiva sobre o assunto. Na busca por embasamento, nos depararemos com a legislação, que no geral chega a ser bastante completa a respeito do tema, mas reticente e vaga quando aplicada em situações práticas; com as convenções e cartas patrimoniais, normalmente contraditórias quando aplicadas sem a análise dos seus contextos históricos, e ainda com a produção intelectual existente - que apesar de importantíssima e ótimo ponto de partida, é arriscada quando adotada sem a problematização necessária. Qualquer uma dessas fontes, adotada sem senso crítico e profunda reflexão, pode encorajar atitudes precipitadas. Num assunto onde tudo é tão subjetivo, é praticamente impossível adotar uma postura única e rígida que não analise cada caso como um caso único.
Com este artigo, pretendemos deixar nossa modesta contribuição para o tema, levantando questões, opiniões e exemplos para discutir formas e critérios que ao nosso ver deveriam nortear a seleção e preservação de bens históricos representativos do nosso patrimônio cultural.

O valor cultural

Mais conhecido de todos, e de maior aceitação, o valor cultural de um bem diz respeito a seu histórico e importância afetiva. Tem valor cultural os exemplares que ilustrem ("contem") uma história importante para a cidade, que tenham abrigado personalidades ou sejam características de algum grupo social, que representem uma cultura diferenciada (como a imigratória), e/ou que tenham importância social, como referencial afetivo. Também em alguns casos, pode ser considerado um exemplar que, ainda que hoje isolado, represente determinado período histórico de uma rua ou bairro.

É talvez o critério mais amplo, considerando-se que a "importância" de cada evento ou período histórico é muito relativa.


Casa eclética com a volumetria típica das regiões de imigração alemã, situada em Sander - bairro de Três Coroas (RS). Por muitos anos o estilo eclético foi considerado sem qualquer valor cultural e mera cópia de um estilo europeu. Em alguns casos ainda se mantém este preconceito, o que se torna um absurdo quando, como neste exemplo, é possível relacionar peculiaridades regionais tanto na volumetria quanto na espacialidade dos prédios. Sem pesquisa, é impossível determinar o valor de um bem! (foto: Jorge Luís Stocker Jr./ Agosto 2010)

Não podemos esquecer que, para conhecer o valor cultural de um prédio, é preciso bem mais do que uma simples visita de levantamento fotográfico e confecção imediata de laudo assinado por profissional legalmente habilitado (e algumas vezes, teoricamente bitolado): a pesquisa oral, documental e bibiliográfica é imprescindível para que se consiga obter dados que ajudem a contextualizar a edificação, sua origem e histórico. É impossível adivinhar o valor cultural de uma edificação através de uma fotografia ou ficha de inventário incompleta e portanto, é completamente hipócrita negar seu valor histórico sem que se tenha procedido uma pesquisa completa e competente. Decisões importantes como esta não podem ser tomadas precipitadamente, na pressa e de portas fechadas, por uma pessoa ou comissão responsável que não tenha respaldo representativo da sociedade e entidades interessadas no assunto.


As poucas edificações modernistas realmente significativas do ponto de vista arquitetônico, como a sede da Previdência Social em Sapiranga (RS), certamente tem um valor morfológico muito acentuado, embora ainda encontrem intensa contrariedade. No entanto, principalmente nas capitais, aos poucos vão encontrando sua valorização através da ampliação das pesquisas de mestrado e doutorado na área e do próprio distanciamento temporal que vai crescendo. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr/ Julho 2010)

O estado de conservação do bem em questão também costuma ser a justificativa para demolições. Oferecer risco aos transeuntes é realmente crítico, mas as providências tomadas devem vir em encontro à valorização e preservação do valor cultural do bem, e não sua erradicação através de demolição. Desta forma, ao invés da resolução de um problema, gera-se outro: um vácuo histórico e cultural irreversível para as nossas cidades já sequeladas e desmemoriadas. O mau estado de conservação pode prejudicar e colocar em risco o valor cultural, mas de modo algum o elimina. Não podemos esquecer ainda que, o próprio estado de ruínas de um edifício pode ser muito representativo e seu restauro ou consolidação enquanto ruína pode ser uma forma de educação patrimonial.



O prédio do antigo Evangeliches Stift e posteriormente Lar da Menina, em Novo Hamburgo, encontra-se em ruínas desde um incêndio nos anos 90, e se desintegrou lentamente ao longo dos anos. Felizmente foi tombado a nível municipal, como reconhecimento ao seu inestimável valor cultural - mesmo no atual estado de ruínas. Nos parece importante que não se reconstrua ou recomponha a fachada exatamente tal como se apresentava antes do incidente, como forma de educação patrimonial: seria demonstrar erroneamente que o patrimônio pode ser facilmente reconstruído, comprovando que erros como descaso e demolições são reversíveis posteriormente. As soluções para seu restauro deveriam, preferencialmente, recompor os volumes mas manter uma forma de valorizar esse arruinamento que faz parte da história da edificação. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./Agosto de 2010 e Acervo Pref. NH)

Necessário dizer, no contexto atual onde vemos é uma completa desfiguração da cidade tradicional, com a existência de apenas poucas migalhas históricas espalhadas pelas cidades, somos da opinião de que TODO e QUALQUER bem de interesse cultural que tenha chegado aos dias atuais em relativa integridade DEVE ser mantido. Ou, no mínimo, deve-se analisar muito profundamente a real necessidade de sua demolição. A quem ela beneficia? Que prejuízos ela traz? Frisando que a situação atual já é crítica, e que qualquer argumento que inclua a possibilidade de "congelamento da cidade" é fajuto (pois os prédios históricos são minoria inconteste) acreditamos ser praticamente impossível que a melhor opção seja a demolição em casos de bens realmente portadores de valor cultural.

O valor morfológico da arquitetura

A qualidade do projeto arquitetônico é, talvez, o conceito mais aceito e aplicado por arquitetos, e também no geral encontra bom respaldo popular. Quando se avalia o valor arquitetônico de uma edificação, se pesa a sua representatividade enquanto exemplar de determinado período estilístico, ou seja, sua filiação (ou reação) a determinada escola. Além de considerar-se a qualidade estética das fachadas, também deve ser avaliada a qualidade e/ou peculiaridade da distribuição espacial.


A Casa Soine, de 1914, situada em Dois Irmãos (RS) é um exemplar de inegável valor morfológico: apesar da relativa simplicidade, nota-se uma aplicação criteriosa e erudita de formas históricas. Tem também seu inestimável valor cultural, enquanto representante da arquitetura residencial em zonas de imigração teuta naquela década (Foto: Elis Regina Berndt/Dezembro 2009)

A planta-baixa das casas antigas, quando ainda reconhecíveis, podem ser uma fonte documental importantíssima para o entendimento das transformações econômicas e sociais. O espaço interno deve ser mantido sempre que possível, obviamente com a devida compatibilização com os novos usos. No entanto, como dificilmente é possível no caso de bens particulares e trocas constantes de usos, o mínimo a se fazer é documentar cada alteração introduzida. Tal precaução é de fácil execução e não se trata de nenhum exagero: é o mínimo a se exigir, em se tratando de prédios que chegaram até hoje em relativa integridade e que são, muitas vezes, os últimos representantes de determinados períodos.


O belo casarão Friedrich, exemplarmente bem conservado pela família, em Novo Hamburgo (RS). Hoje abriga um museu particular e mantém seu uso residencial, usos sustentáveis e que possibilitam a manutenção de sua integridade. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./Setembro 2010)

É preciso ter em mente que, quando trabalhamos com um prédio histórico, temos em mãos um documento valioso que é portador de informações. De fato um documento "vivo", no qual as alterações e modernizações podem e devem somar ainda mais valores. Justamente por isso devem ser feitas com cuidado, conhecimento e com a devido registro das intervenções e motivações, que deve ser exigido pelas comissões responsáveis . Afinal, profissionais entram e saem dos seus cargos e a informação não documentada poderá se perder definitivamente.


A Casa Kaiser é um dos mais valiosos bens históricos do município de Novo Hamburgo (RS). Situada em Hamburgo Velho, data aproximadamente de 1850, e não tem hoje qualquer proteção legal. Trata-se da única construção enxaimel que ainda apresenta-se na sua quase originalidade, mantendo tanto sua estrutura quanto seus interiores com pouquíssimas intervenções, devido a manutenção do uso residencial pela família até alguns anos atrás. Hoje encontra-se desocupada. Seria lamentável neste caso específico uma reciclagem de uso que desfigurasse seu interior, por se tratar da única edificação enxaimel da cidade e uma das únicas da região a manter-se praticamente original. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr. / Agosto 2010)

Os critérios cultural e morfológico, bem como os demais (técnico, paisagístico, funcional, reconhecimento teórico e popular, etc) se entrelaçam e se complementam, de forma que não se pode julgar a partir de apenas um ponto de vista. Nos próximos artigos, buscaremos discutir um pouco sobre os demais critérios. Deixe sua contribuição nos comentários!

Texto: Jorge Luís Stocker Jr.