Vivemos um momento único na trajetória da preservação do patrimônio cultural brasileiro. Até um passado recente o tema estava restrito apenas à esfera administrativa, e vinculado a iniciativas isoladas dos poderes públicos. Mas após o exemplo de movimentações pioneiras nas décadas de 70 e 80 e, posteriormente, com a redemocratização e a difusão de ações educativas e sensibilizadoras, há um crescente reconhecimento e integração das diferentes manifestações culturais no rol do patrimônio cultural nacional.
Movimentação de pintura voluntária das edificações antigas, em Hamburgo Velho-RS na década de 80.
Com a dilatação do conceito de patrimônio cultural, inclusive do próprio patrimônio material, o tema passa aos poucos a constituir pauta cotidiana da própria sociedade civil. De agente passivo e espectador da ação pública, a sociedade coloca-se como principal ator e agente no processo de reconhecimento e preservação.
Este novo momento traz imensas possibilidades e também enormes desafios.
Sociedade Civil x Inventários: a seleção dos bens culturais materiais a resguardar
O inventário evoluiu muito enquanto instrumento de conhecimento e preservação do patrimônio cultural. Potencializado na década de 80 por sua inclusão no artigo 216 da Constituição Federal, o instrumento vem se modificando e adaptando às mais diferentes circunstâncias.
O reconhecimento deste instrumento para efetivar a preservação ainda é problemático, uma vez que sujeito às intempéries políticas locais. Poucos municípios já tem legislação eficiente para respaldo legal de um inventário. Ainda menos assumem de forma concreta as pré-existências inventariadas como ferramenta do seu planejamento urbano.
É possível afirmar, ainda, que nos trabalhos de inventário a visão apenas tecnicista continua prevalecendo. Inventários são contratados, realizados por uma equipe e prontamente dados por finalizados sem que haja consultas e estudos feitos com a comunidade local. Não por acaso, acabam engavetados e sem qualquer destino prático.
Campanha SOS Patrimônio Cultural NH, iniciativa do Coletivo Consciência Coletiva com apoio da oscip Defender, difunde a preservação informações através de informativo, intervenções urbanas e artísticas em Novo Hamburgo (RS).
Certo é que os estudos técnicos realizados por arquitetos, historiadores, sociólogos e afins são a base importante da pesquisa e devem ser tratados com toda a seriedade. Eles dão conta de valores importantíssimos, como o histórico, artístico, documental, paisagístico, entre outros. Estes são parâmetro suficiente para determinar a preservação, ainda que no momento determinados bens sejam eventualmente detestados pela sociedade. A valoração afetiva e o pertencimento podem, inclusive, começar a ser construídos a partir destes estudos.
No entanto, é indispensável que os processos de seleção de bens culturais materiais prevejam uma etapa de participação da comunidade - isso se não for possível promover a participação permanente. A comunidade local é única portadora de informações importantes, detentora de saberes, experiências e mesmo dos caminhos para outras fontes. A comunidade que vive no local tem uma trajetória que precisa ser levada em consideração, detentora dos valores mais "imateriais" de cada bem edificado. Mesmo em centros urbanos globalizados, a comunidade é aquela que convive e se relaciona diariamente com aquele espaço, e é conhecedora, portanto, de suas deficiências e potencialidades.
É importante frisar que a participação da sociedade num processo de inventário não deve se dar através de um processo superficial. O diálogo deve ser constante, permanente e franco. Questionários pré-formatados certamente não são uma alternativa efetiva de ouvir a comunidade. Da mesma forma, não se pode transformar a participação da sociedade numa situação de "banca pública" de um inventário - onde se vota por maioria edificações que entram e que não entram. Também uma avaliação coletiva do processo científico de um inventário acaba por menosprezar tanto o estudo próprio técnico quanto a sabedoria popular, promovendo um processo artificial de democracia.
Jacques Dalibard fez, neste sentido, uma declaração bastante elucidativa:
“Só a democracia participativa, aliada à informações e educação, poderá assegurar que as escolhas certas serão utilizadas”.
Reside justamente na educação e na ausência de informação, o cerne da problemática que ainda envolve a preservação. Lidamos com um déficit histórico na educação, principalmente no que tange a cidadania. Temos um lapso ainda maior de informações a respeito de instrumentos de preservação, contrapartidas aos proprietários, deficiências e limitações destas e também das possibilidades. Num contexto de falta de noções de cidadania, de direitos urbanos, coletivos e difusos, da importância do patrimônio cultural e finalmente, das possibilidades para sua manutenção, não é nada surpreendente que a sociedade tema a proteção. É natural temer o que não se conhece. Difundir informações com coerência e serenidade é um dos maiores desafios que se impõem.
Recente protesto contra o tombamento em Santo Ângelo-RS, mostra "o outro lado": a sociedade também pode se articular contra a preservação quando se sente atingida e não tem as informações necessárias. É importante, ainda, lembrar que apesar da aparente oposição da sociedade, foi outra parcela da própria sociedade civil que solicitou o tombamento, devidamente embasada em preceitos constitucionais. FONTE DA IMAGEM: Jornal das Missões.
A sociedade também pode e tem tomado a frente na construção das políticas públicas de preservação e planejamento urbano, pautando a ação dos poderes públicos. Campanhas de conscientização, pedido de tombamentos e afins tem sido frequentes, a partir da organização de grupos de ação da própria comunidade. A catalogação de bens materiais de valor afetivo pras comunidades é possível através de trabalhos espontâneos destes grupos, com o uso de instrumentos como os Inventários Afetivos, que propusemos através da oscip Defender. Estes não pretendem sobrepor os estudos técnicos, mas complementá-los e demonstrar que a sociedade pode reconhecer mesmo bens que seriam desprezados por estudos técnicos. Também tem sido usados como um primeiro mapeamento em locais que sequer foram inventariados.
A caixa d'água do bairro Petrópolis, em Porto Alegre, certamente não apenas passaria despercebida de um inventário técnico, como poderia ser indicada para remoção. Execrada por muitos, era tida como ponto de referência para a população, rememorando o período de urbanização do bairro. A comunidade organizada insistiu e conseguiu a inclusão do bem no inventário oficial do município, após muita discussão. FONTE: Amigos da Rua Gonçalo de Carvalho.
Não devemos temer a participação popular, pois ela é essência do patrimônio. Precisamos, sim, um enorme esforço para que sejam trazidas à luz todas as informações necessárias, capacitando e qualificando a sociedade para o debate. A maturidade na interlocução entre os critérios técnicos e afetivos deve ser acompanhada de um enfrentamento corajoso da problemática econômica e das dificuldades e caminhos para a preservação. Os lados divergentes, somados, poderão conquistar enormes avanços na qualidade de vida, através da preservação.
A participação da sociedade, como vimos, traz imensas possibilidades e enormes desafios. De qualquer forma, sempre trará melhores desfechos do que o silêncio e inércia da mesma sociedade. Já vimos que marginalizar a sociedade do processo de preservação é um modelo mal sucedido em todos os lugares em que foi aplicado. Que possamos ter cada cidadão participando ativamente da construção deste debate!
Kannst du verstern deutsche?
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