sábado, 20 de abril de 2013

A propósito da demolição da SAT – Vida e morte do patrimônio modernista no litoral norte gaúcho


Crédito da imagem: Cesar Girardi


No início da semana a sociedade gaúcha foi pega de surpresa com uma trágica notícia: a demolição de parte da sede social da SAT – Sociedade Amigos de Tramandaí, clube social e esportivo litorâneo muito conhecido por turistas, veranistas e moradores da cidade.
  A foto das obras chocou centenas de pessoas que guardavam com carinho memórias vinculadas ao espaço - em especial os bailes de carnaval. Chocante também a perda daquele referencial paisagístico querido, presente, marcando com obras de arte uma esquina no caminho de quem desce do centro para a praia ou vice-e-versa.
A propósito do despropósito da demolição da SAT, e da desvalorização do patrimônio do movimento moderno da arquitetura no litoral norte, tentamos ser breves mas não conseguimos. Tentamos ser técnicos, mas o lado afetivo impôs-se. Deixemos que ele fale mais alto.

A Vida - Litoral Norte e Patrimônio Moderno

O litoral norte gaúcho passou a ter no início do século XX grande importância para a sociedade. Nesta época estava em gestação um dos fundamentos da cultura sul rio-grandense, os “veraneios”, que dali pra frente cada vez mais mobilizariam a população.
A cultura dos “veraneios”, de lazer e terapêuticos, conheceu as versões campestre e litorânea, mas foi a segunda que de fato consolidou-se. O litoral norte, pela proximidade com a região metropolitana de Porto Alegre, mostrou-se o espaço mais propício para o estabelecimento desta cultura.
As viagens até o litoral, que inicialmente assemelhavam-se a odisséias, aos poucos foram tornando-se mais práticas com o advento dos automóveis e das estradas de rodagem melhor conservadas. Com isso o litoral norte consolidou-se como “segunda casa” para milhares de gaúchos. Grandes extensões de cômoros de areia foram dando lugar a dezenas de balneários, os chalés de madeira enfileiravam-se lado a lado, o traçado de cidade-jardim complementava o clima festivo e descompromissado de “colônia de férias”.
Tramandaí já era um pequeno povoado de origem luso-açoriana nos primórdios, sem fins de lazer e balneabilidade, e por esse motivo desenvolve-se em relação ao rio. Com a chegada dos veranistas, o núcleo urbano inicial se consolida, e logo o até hoje lembrado “bondinho” passaria a fazer a ligação entre o núcleo urbano e a praia, distante alguns quilômetros.
O rápido desenvolvimento do litoral torna-se uma realidade, e a população cada vez mais aficcionada pelos veraneios. O clima agradável e a tranqüilidade eram uma perfeita válvula de escape das cidades em pleno crescimento da região metropolitana.

Crédito da imagem: André Huyer.

As cidades litorâneas também consolidam-se como espaços de sociabilidade, onde velhos amigos se encontram, onde moradores de cidades distantes podem conviver como vizinhos durante alguns meses, e onde as famílias dispersas por várias casas e cidades conseguiam afirmar-se como famílias, reunidas sob um só teto, convivendo unidas pelo menos por alguns momentos no ano.
As amizades, somadas a presença de elementos teuto-brasileiros bastante afeitos ao espírito associativo foram viabilizando o surgimento das famosas “sociedades de amigos”, específicas de cada balneário. As Sociedades passavam a ser o principal palco da sociabilidade do litoral, e com a união e objetivos em comum, diversas delas conheceram a prosperidade, crescendo em importância e em número de associados.
A infra-estrutura de lazer conquistada em conjunto acompanhava todo um esforço de cooperação para a promoção de eventos (em especial os carnavais). Não a toa a construção das sedes sociais envolvia sócios e não sócios, com amplas campanhas de arrecadação de fundos.
É possível dizer que a arquitetura moderna encontrou no litoral norte gaúcho um dos principais palcos para manifestar-se. Era mais complicado implantar-se uma nova arquitetura nas cidades já saturadas de edificações de todos os tipos, com um mercado de construção civil cada vez mais restrito a edificações sem tanto cuidado arquitetônico e com uma vinculação afetiva cada vez menor das pessoas com as cidades.
Já no litoral era diferente: loteamentos em plena implantação propiciaram a aplicação de teorias urbanísticas novas, como a Cidade-Jardim pragmática adaptada pelo Eng. Ubatuba de Faria em Imbé e Atlântida. A demanda de construção de residências unifamiliares, tema querido de todas as teorias arquitetônicas, era significativa, em contraponto a demanda de apartamentos padronizados na cidade grande.
Uma expressão única de arquitetura começou a operar-se no litoral norte gaúcho: um modernismo nosso, adaptado pelos nossos arquitetos ao programa, situações, clima e gosto do cliente. Tivemos até mesmo chalés de traço modernista, inspirados em volumetrias de Niemeyer e com direito a cobogós, brise-soleil e muxarabis. O modernismo consolidou-se como em nenhum outro local do Estado como expressão máxima da arquitetura de um período.
Em Tramandaí, a sede social da SAT aparece como uma obra-prima que marca o auge de todo este ciclo, nos anos 60 e 70. O que houve de experimentação moderna na sede social da SAPI, da vizinha Imbé, foi perfeitamente desenvolvido na sede social do clube Tramandaiense.

Sede da SAPI, na vizinha Imbé. Fotos: Jorge Luís Stocker Jr.

Aparentemente construído em etapas, a arquitetura modernista do prédio da SAT remete a escola carioca, com suas generosas curvas, planos inclinados, volumetria arrojada. O prédio prima pelo formalismo em cada detalhe, apresentando obras de arte agregadas aos planos de fachada. As fenestrações em planos ou pautando a forma complementam a obra arquitetônica.
É importante ressaltar, ainda, o quanto o projeto da sede social da SAT, em sua totalidade, dialoga com o “espírito” do lugar: prima pela horizontalidade, tão característica do litoral norte gaúcho. Com nossa extensão de praia aberta, enxergamos a linha do horizonte integralmente. Sem acidentes naturais, assentado numa enorme planície arenosa, o litoral norte teve sua vocação para o horizontal traduzida e codificada em sua arquitetura moderna.


Crédito da imagem: André Huyer.

A morte – demolição do prédio da SAT

A infeliz notícia da demolição da esquina da sede social da SAT difundiu-se pelas redes sociais de forma viral. Foram dezenas de compartilhamentos, e centenas de lamentos. Acreditamos que ninguém imaginaria a quantidade de pessoas que tinham vínculos afetivos com aquele espaço.
Na defesa do patrimônio cultural gaúcho, nos deparamos frequentemente (e quase diariamente) com perdas irreperáveis de bens históricos. Mas podemos afirmar que jamais vimos um caso com tanta repercussão.
A demolição do prédio da SAT agride. Mexe com memórias. E não são quaisquer memórias: são memórias queridas, memórias de veraneio. Os melhores momentos da vida. Uma instituição gaúcha.
Aquele ponto marcante na Avenida da Igreja não existe mais. O monumento da garça, único contraponto vertical a horizontalidade do prédio, permanece como triste retrato do que sobrou. Espera para breve ser acompanhada de uma torre de apartamentos.


Crédito da imagem: Marione Otto.


A justificativa é a de sempre: dificuldades financeiras. Ontem a SAT fazia campanhas de arrecadação para ajudar causas diversas. Hoje, parece incapaz de fazer uma campanha para resgatar a si própria. Em momento de crise,  poderia-se reforçar a identidade da SAT, resgatar o espírito associativo, a vinculação afetiva com o espaço. Mas certamente o caminho mais fácil não apresentava tantos obstáculos a superar. Caminho este que aparece como o primeiro passo pra liquidá-la: aquele palco de tantas memórias torna-se repentinamente uma área condominial.

São só 25% por cento do prédio demolidos. Nos números tão pouco, mas na paisagem e na memória, uma soma significativa. O que seria de um livro, cortados 25%? Como entender um filme do qual se corta a melhor parte? O que é da nossa história enquanto sociedade, quando apagamos um trecho importante para no lugar inserir palavrões vulgares?


Crédito da imagem: Marione Otto.

Sem esquecer da soma de “tantos por cento” do novo prédio, que pretende-se construir na esquina, descontextualizando o antigo em sua harmonia de obra de arte. Agredindo a paisagem de Tramandaí em um dos seus únicos pontos de referência coletiva.
O apoio de veranistas, moradores e até associados da SAT ao embargo da demolição, conquistado pela pronta atuação do Ministério Público após denúncia da oscip Defender e de outros cidadãos, é indicativo de que algo está errado - e de que algo poderia, pôde e poderá ser feito pra reverter este tipo de situação.

A morte do patrimônio moderno no litoral norte gaúcho é uma realidade diária, triste e agressiva. Não é inevitável. Acontece porque queremos, ou porque deixamos. Instrumentos de proteção consagrados existem: apenas estamos evitando. Enquanto isso alguém está tripudiando sobre nossas memórias, sobre nossa identidade.

Não tão privilegiado pela natureza, nosso litoral norte tem por vocação a sociabilidade. É ela que estamos atacando. Estamos esquecendo a vinculação afetiva e social, que é base pra cultura do veraneio, e que ao desprezá-la estamos condenando nossas cidades litorâneas. Que a perda do prédio da SAT sirva de lição para que a sociedade busque reconhece-se em sua própria dimensão cultural. Só assim poderá evoluir. Do contrário, seguiremos nos vendendo facilmente (e com contrapartida irrisória) a qualquer ideal de “progresso” fajuto, vazio e que nada representa em termos de desenvolvimento humano e social.


Jorge Luís Stocker Jr.