quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Falando um pouco dos inventários...

A preservação do patrimônio cultural brasileiro encontra, no geral, empecilhos que já deveriam estar superados há muitas décadas. A falta de políticas municipais é o maior deles, e apenas reflete o ócio da sociedade na valorização do seu legado. O primeiro passo - inventariar o que existe - acaba sendo permeado de interesses políticos econômicos ou preconceitos ideológicos, impedindo uma correta valorização do patrimônio enquanto integrante e agente qualificador do espaço urbano.


Na cidade de Santa Maria do Herval (RS), a inexistência de qualquer tipo de levantamento torna frequente casos como este: edificações centenárias em técnica enxaimel são demolidas para dar lugar a prédios comuns da rotina imobiliária, que poderiam ser construídos em qualquer outra área livre da malha urbana. O patrimônio, que deveria articular o espaço urbano, some e dá lugar a falta de harmonia. (fotos: Elis Regina Berndt / 2008 e Jorge Luís Stocker Jr/2010)


Os inventários e seus critérios restritivos

O inventário do patrimônio cultural é sem dúvidas um importante instrumento: pode-se dizer que seja uma espécie de primeiro passo para o conhecimento das edificações e conjuntos importantes existentes no município. O produto do inventário é o conjunto de fichas-padrão, preenchidas com informações detalhadas específicas sobre a arquitetura e histórico de cada bem cultural, acompanhadas de levantamento fotográfico. Caso encontre o devido respaldo na legislação municipal e plano diretor, poderá se tornar o mais importante aliado na preservação e valorização do patrimônio cultural.

Quando o poder público toma a decisão de inventariar o legado arquitetônico, é recorrente que o trabalho seja feito pelo próprio corpo técnico das prefeituras. Este, embora devidamente capacitado, normalmente sofre a falta da autonomia necessária. Nestes casos, aparecem pressões de ordem política e econômica, alheias ao conhecimento científico, surgindo de critérios absurdos para a seleção das edificações: busca-se exemplares íntegros, sem alterações externas ou internas em relação ao estado original, e situadas em um entorno homogêneo ou harmônico. Busca-se, em suma, edificações em perfeito estado de conservação e, de preferência, aquelas cujos proprietários vejam a questão patrimonial com bons olhos e que "aceitem" ter seu bem tido como histórico.

Estes critérios, que seriam mais adequados para um passo maior, o tombamento municipal, acabam sendo adotados já para o filtro inicial, o inventário. Municípios com centenas de bens patrimoniais e conjuntos acabam limitando seu inventário a algumas dezenas de edificações, "as mais importantes e significativas". Com isto, limita-se ainda mais o universo de bens efetivamente tombados e protegidos integralmente: apenas aqueles "monumentais", segundo versam os antigos critérios, deveriam permanecer como monumentos históricos.
O inventário perde, então, o que deveria ser sua finalidade. Esperar-se-ia uma fonte completa de informações, devidamente mapeadas, a partir das quais seja possível separar e classificar os bens históricos por níveis de preservação (os que deveriam ser preservados na sua integridade, os que poderiam ser readequados internamente para novos usos com sensíveis alterações, ou mesmo os que poderiam ser desfigurados mantendo somente sua volumetria.)

Outro grande problema, é a adoção de critérios antiquados e preconceituosos para a seleção de bens. O inicialmente difamado estilo eclético já é hoje devidamente aceito como autêntico e histórico, no entanto, prédios pouco mais recentes que estes ainda encontram dificuldades. Pequenas cidades, cujo período de maior expressão foi influenciado pelo Art Deco, por exemplo, esbarram no desconhecimento da própria existência destas manifestações no município. Exemplares proto-modernos e do movimento moderno sequer são cogitados nas listagens. Isso se agrava pela inadequação das fichas padrão em relação as técnicas construtivas modernistas. A sua construção "muito recente" (embora alguns já datem dos anos 40) são a alegação mais comum quanto a exclusão destes bens nos inventários.


Duas edificações Art-Deco de Três Passos (RS). A cidade alcançou seu auge por volta dos anos 50, sendo característico da cidade este estilo, simplificado para o uso local. Não há registros de valorização deste legado. (fotos: Jorge Luís Stocker Jr/2010)

Os estilos historicistas, como o Missões / Mexicano / Californiano e os neo-medievais, encontram além da data de construção, o próprio preconceito cultivado dentro das escolas de arquitetura contra estes estilos. Por não se alinharem com a estética modernista vigente em suas épocas (majoritariamente até os anos 50), estes bens são considerados bregas, cenográficos, meros produtos imobiliários e desprovidos de qualquer valor histórico. No entanto, em muitos casos foram dentro destes estilos que surgiram os primeiros exemplares a apresentarem uma implantação diferenciada em relação ao lote, com recuos laterais ajardinados, aparecimento da garagem, aplicação de estratégias de conforto ambiental, técnica construtiva em concreto armado e uma série de novidades que são inegavalmente importantes e que justificam sua preservação. A própria existência de conjuntos homogêneos deste estilo deveria ser mais valorizada e levada em consideração, sob o risco de estarmos repetindo o mesmo erro cometido inicialmente contra o estilo eclético, e que abriu precedente para inúmeros crimes.


Esta casa em estilo missões, demolida em 2009 na cidade de Novo Hamburgo, ilustra a falta de atenção às edificações deste estilo. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr/2008)

Mas o que resta dizer, quando grande parte dos municípios não superou sequer este primeiro pequeno passo? Na maioria dos municípios inexiste sequer uma lista simples, quanto menos inventário ou tombamento. A meia dúzia de informações desencontradas existentes nas prefeituras destas cidades são arquivadas ou registradas nos mais diversos lugares e formatos e se perdem entre uma gestão e outra. A falta de bancos de dados digitais, constantemente atualizados e de fácil consulta, impedem a gestão adequada do patrimônio e dificultam sua própria divulgação.



Os inventários desmoralizados

Muitos municípios concluíram seu inventário do patrimônio cultural há bastante tempo. É o caso de cidades como Canoas, Sapiranga e Campo Bom (RS), que tem em comum o fato de terem realizado o inventário nos anos 90.

Era, então, ainda uma novidade a "abertura" dada pelos institutos de patrimônio às edificações relacionadas a imigração alemã, por exemplo. Mas, escassamente estudadas que eram até então, muitos exemplares seriam ignorados pela falta de informações que embasassem sua importância cultural.

A falta de respaldo na legislação municipal e a série de demolições que aconteceriam, muitas vezes durante o próprio processo de pesquisa, acabaram por desmoralizar estes levantamentos. Estes inventários não tem, hoje, nenhuma aplicação prática, sendo no máximo timidamente citados em planos diretores, audiências públicas e afins: o Inventário do Patrimônio Cultural, que deveria ser um instrumento importante, se torna um simples arquivo engavetado. Um mero e inutilizado conjunto de "registros históricos" do que a cidade TEVE até determinado ano, utilizados como forma de "cumprir o estatuto das cidades" com a manutenção de planos diretores fantasiosos e ineficientes, sem qualquer aplicabilidade no mundo real.


Exemplar do eclético típicos das áreas de colonização alemã, em Sapiranga (RS). Algumas vezes quando não estão demolidos, os bens inventariados encontram-se comprometidos em seu conteúdo histórico. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

Tais adjetivos podem ser atribuídos ao inventário da cidade de Campo Bom. O estudo deste inventário, procedido pelo autor como exercício acadêmico no ano de 2009, demonstra seu "resultado prático": dos já poucos 57 bens listados em 1996, 12 hoje já se encontram completamente demolidos e 07 severamente danificados (desfigurados ou em ruínas).


Casos como o da Casa Moraes de Campo Bom são recorrentes: apesar de inventariados, são demolidos sem qualquer iniciativa da Prefeitura ou mesmo manifestações da sociedade. Esta casa foi esquecida tão rapidamente quanto demolida. (Foto: Inventário do Patrimônio Cultural de Campo Bom/1996)

Restam, portanto, apenas 37 bens 'praticamente' conservados, embora isso se deva ao puro acaso - não há nada que os proteja da demolição. Não apenas a falta de informação, especulação imobilária ou desinteresse dos proprietários explica tal resultado: a ineficiência e falta de interesse do poder público, aliado a conivência da sociedade, completam o triste caso. Lamentavelmente, se trata de uma das primeiras colônias alemãs no Brasil, que hoje tem muito pouco a mostrar aos seus visitantes e muito pouco a cultivar entre seus moradores.

Um quadro que começa a mudar

Felizmente, nem tudo são lamentações: na cidade de Canoas (RS), após mais de uma década da conclusão do inventário, e depois de muitas demolições, o assunto começa finalmente a ser levado a sério pelo poder público local.

A Prefeitura de Canoas, desde 2009, tem buscado sistematicamente tombar os prédios históricos inventariados do município. A cidade, fragilizada em sua identidade pelo crescimento explosivo, pela proximidade com a capital e ainda pelas "chagas urbanas" abertas pela linha superficial do trensurb e pela BR-116, finalmente volta os olhares aos pequenos mas significativos exemplares do charme e da riqueza do seu patrimônio cultural.


Villa Nenê, recentemente tombada na cidade de Canoas (RS) (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

Já foram tombadas a Villa Mimosa, Villa Nenê, Casa dos Wittrock, Igreja Matriz, Antiga estação férrea e Casa dos Rosa, sendo dois destes bens de propriedade privada. São passos importantes e que não podem parar por aí. Ainda existem poucas, mas importantes edificações que deveriam ser preservadas, estejam elas inclusas ou não no inventário anteriormente produzido. São o pouco que restou e que, devidamente pensadas e incluídas em projetos eficientes, podem ser reapropriados pela memória afetiva da população local.



Casas históricas de Canoas (RS), ambas da década de 20 e que deveriam ser urgentemente valorizadas. São das poucas edificações ainda existentes representantes existentes de um período determinante para a história do município, e não podem ser marginalizadas no planejamento urbano. (fotos: Jorge Luís Stocker Jr/2010)

Texto: Jorge Luís Stocker Jr.
Imagens: Elis Regina Berndt e Jorge Luís Stocker Jr.

Leia também:

- Notícias de tombamentos em Canoas (RS): [ 1 - 2 - 3 - 4 - 5 ]

- Manual de inventário do IPHAE-RS

3 comentários:

  1. que triste aquela ali em Santa Maria do Herval! Lógico, todos os exeplos são tristes mas ali, uma cidadezinha pequena e que poderia aproveitar as casas, inclusive como potencial turístico, me deu mais dó ainda.
    só ficam as fotos e os lamentos.

    abraço!
    Juliana

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  2. Excelente texto. Um grande aprendizado em poucas linhas. Como você bem disse, os inventários não são meros documentos "só para constar". São instrumentos-base para uma política preservacionista bem maior, ao lado de outros, como a própria educação patrimonial/ambiental.

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  3. De que adianta inventariar se o documento não é respeitado? Muitas cidades possuem um inventário apenas para "constar", já que os cidadãos sequer sabem da sua existência e o poder público o ignora.
    Triste.

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