terça-feira, 15 de abril de 2014

Preservar é coisa séria. Restauração também

                A restauração de bens históricos é competência do profissional arquiteto e urbanista, segundo a legislação existente e as resoluções internas do CAU. O conhecimento técnico e teórico necessário para propor uma restauração, no entanto, ainda passa longe de integrar efetivamente os currículos. Este conhecimento específico está restrito às pós-graduações profissionalizantes, que ainda são poucas e, devido a geral não exigência de especialização para assumir uma obra de restauro, tornam-se pouco atrativas.

O efeito Dona Cecília está presente em muitas obras de restauração.

                O resultado deste lapso de informação e de formação é a agressão contínua a bens patrimoniais de importância ímpar, que são submetidos a intervenções equivocadas ou até desastrosas que aceleram sua degradação, desfiguram seu aspecto volumétrico ou mesmo implicam praticamente na perda total do bem.

 Antes de mais nada: Existem casos e casos

                É preciso sempre deixar muito claro que patrimônio cultural é diverso e não um conceito fechado e absoluto. Existem diferentes tipos de valores, e diferentes intensidades de importância destes valores, que podem ser atribuídos aos bens culturais.
                Existe, portanto, aquele bem que pode ser inventariado como patrimônio cultural ainda que não tenha grandes valores artísticos ou históricos - mas em contrapartida, compõe paisagem ou pertence a uma tipologia característica do local. Estes bens patrimoniais normalmente se prestam a receber intervenções mais profundas, desde que mantenham suas características principais (volumetrias, ritmo de fenestrações, etc).
                E existem aqueles bens que tem enorme relevância arquitetônica e/ou histórica, bem como paisagística, documental, social e etc. que, por suas características únicas, merecem muita prudência, sensibilidade e cuidados ao receberem intervenções recuperativas. Isso não significa que não possam ser adaptados e receber anexos, e sim que essas adaptações anexos devem ser elaboradas com todo cuidado e seguindo diretrizes de preservação.
                É importante frisar que o senso comum de “manter apenas a fachada” é bastante perigoso e equivocado. Faz-se necessário analisar sempre muito bem os valores de cada bem histórico, para que se defina o que nele é importante e o que eventualmente possa não ser.



Jogo dos 7, ou mais, erros.

Intervenções desastradas

                Recentemente o caso da desfiguração de uma pintura religiosa promovida pela "dona Cecília" teve grande repercussão na mídia internacional. A deformação de uma obra de arte é bastante fácil de reconhecer. Já a deformação de obras de escultura e de arquitetura muitas vezes passam despercebidas, devido aos poucos bons referenciais estéticos e culturais da população.

O efeito "dona Cecilia" - na arte visual é fácil de reconhecer. Já tentou em edificações?

                O tema torna-se delicado e difícil pois, para o senso comum, qualquer obra recuperativa seria melhor do que o abandono. O problema é que as obras recuperativas equivocadas acabam sendo tão agressivas para a preservação do bem histórico quanto o abandono. A analogia com a pintura anteriormente apresentada é válida – será que esta “recuperação” salvou a pintura? Será que estas reformas desastrosas salvam, de fato, os bens históricos?

                O senso comum considera restaurada a edificação que após algumas obras fica em aparente bom estado, com tinta fresca colorida e “ bonita”. A questão, no entanto, é muito mais complexa: além do conceito de “beleza” ser muito relativo, soluções técnicas inadequadas, mesmo com intenção de recuperar, costumam inclusive piorar a saúde da edificação.

Podemos citar como alguns exemplos mais recorrentes o uso de reboco composto por cimento em edificações incompatíveis (deixando as paredes rapidamente com reboco craquelado – o que facilita infiltrações pluviais); uso de tintas inadequadas - como a latex acrílica ou até a antipixação - sufocando as paredes antigas (que rapidamente se destacam da parede, gerando bolhas que igualmente facilitam infiltrações); construção de lajes, proto-lajes e outros tipos de coberturas ou anexos contíguos a edificação histórica com técnicas inadequadas, gerando áreas de contato problemáticas que facilitam infiltrações, exposição indevida de madeiramentos que passaram décadas escondidos por reboco, expondo material frágil às intempéries, envernizamento de taipas de barro; aterramento de porões e fechamento dos respiros, causando umidade ascendente e prejudicando a longo prazo até mesmo as fundações, entre tantos outros inúmeros desastres.

Efeito do uso de tinta inadequada. Bonitinha, mas ordinária!


As intervenções inadequadas são muito mais dispendiosas a longo prazo, visto que geram novas patologias e até problemas estruturais graves que precisarão ser corrigidos; e principalmente, descaracterizam o conteúdo cultural da edificação, agredindo o direito à memória de todos os cidadãos. A descaracterização dos bens históricos protegidos por lei é gravíssimo, pois torna questionável todo o esforço pela preservação, uma vez que derruba diretamente o principal objetivo que é a manutenção da memória através do documento histórico (edificação e paisagem), servindo a toda a sociedade.

Reboco inadequado para paredes com rejunte a base de barro e cal e seu efeito...

Torna-se, portanto, urgente e necessária a maior difusão do conhecimento técnico de restauração de bens históricos, tanto para o projeto quanto para a execução das técnicas tradicionais. Ainda mais urgente é a evolução das políticas de patrimônio cultural, para que de fato contemplem e possibilitem que proprietários de imóveis particulares tombados ou inventariados financiem a recuperação dos imóveis com assessoramento técnico adequado. E o aparelhamento dos órgãos de preservação nacional e estaduais, permitindo que contribuam no processo de estabelecimento de diretrizes, aprovação de projetos e acompanhamento das obras mais importantes, uma vez que ainda é numericamente impossível que cada Prefeitura mantenha técnicos capacitados nesta área.

Enquanto a questão não evoluir, continuaremos nos deparando com inúmeras restaurações com o padrão "dona Cecília".

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