terça-feira, 30 de março de 2010

Homenagens equivocadas

São Leopoldo é conhecida por ter sido o “berço da imigração alemã no sul do Brasil”. Por muito tempo, foi a sede administrativa da colônia alemã promovida pelo governo Imperial. Era de se esperar da cidade que fosse hoje uma “Alemanha” no Brasil, um pólo turístico cultural.
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Centro histórico de São Leopoldo. Ao centro, a igreja, e ao fundo, antigo Seminário Jesuíta, projetos do arquiteto alemão Grunewald (foto:Jorge Luís Stocker Jr./2008)

Nada disso se confirma na realidade. Uma série de fatores levaram a cidade a renegar sua origem cultural – entre elas, o regime de nacionalização imposto durante a ditadura, que visava unificar a identidade brasileira. O desenvolvimento econômico obtido com o setor calçadista trouxe novas pessoas e novos meios de vida e sociabilidade, completamente diferentes do contexto cultural da imigração.
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Mas ainda que a cultura germânica sempre tenha sido muito presente, percebe-se que a arquitetura urbana de São Leopoldo nos seus primórdios foi muito mais influenciada pela cultura construtiva luso-brasileira, do que pela alemã. Enquanto no ambiente rural da colônia prevaleciam as casas enxaimel construídas pelos imigrantes, na área urbana o estilo colonial português era uma constante, regido a partir de certa data por um código de posturas urbanas, assim como os vilarejos colonizados por açorianos.
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Com a evolução deste vilarejo, São Leopoldo veria surgir um conjunto arquitetônico muito conhecido, que consiste no que hoje restou do seu “centro histórico”: a praça do Imigrante, a Igreja Matriz, e o antigo Seminário, hoje pertencente à Unisinos – sendo os dois últimos, obras do conhecido “Mestre João” – o arquiteto construtor Johann Grünewald, autor também do prédio da Cúria Metropolitana de Porto Alegre, recentemente tombado.

Conjunto projetado pelo arquiteto Johann Grunewald. (foto: Jorge Luís Stocker Jr/2008)

O arquiteto de origem alemã trabalhara como assistente nas obras de restauração e conclusão das torres da catedral de Colônia, na Alemanha, e era especialista no entalhamento de pedra grês e no estilo gótico. Suas obras consistem em exemplares interessantíssimos de arquitetura influenciada pela construtividade e estética dos edifícios góticos.
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Lateral de um dos prédios antigos da Unisinos, projetado por Johann Grunewald, antes da última pintura. Foto: Jorge Luís Stocker Jr/2008

Para homenagear o passado é preciso conhecê-lo

Dando um salto no tempo, chegamos no período atual. De olho no marketing, na tentativa de angariar fundos através do turismo de massas - com forte inspiração nos erros grotescos de Gramado - as prefeituras da região começam a promover um resgate da identidade germânica.
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Tudo parece muito bem intencionado: homenagear o passado não é, afinal, necessário?
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O problema é que nos deparamos com projetos que negam o passado real, e o patrimônio cultural autêntico, em favor de uma construção de realidade, onde se tenta das piores formas possíveis dar sobrevida a características culturais que já não fazem sentido nos dias atuais (ou que jamais fizeram sentido. )
Ao invés de um resgate das origens arquitetônicas do município, valorizando os prédios históricos autênticos existentes e relacionando com a cultura alemã, vemos construções novas tentando "homenagear" um passado idealizado, com um completo desconhecimento das técnicas construtivas originais e do contexto histórico da arquitetura regional. São demonstrações de vista grossa para toda a evolução da história da arquitetura desde então.

A nova Prefeitura de São Leopoldo (RS)

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A bola da vez é o novo projeto de Prefeitura Municipal para São Leopoldo, recentemente divulgado. A obra já encontra-se em fase de licitação, e seu aspecto visual assusta pelo completo desrespeito com a técnica construtiva enxaimel. A técnica original é reduzida a ‘estilo’, e este pretenso estilo, reduz-se ainda a meras traves diagonais agregadas à fachada.


Uma das imagens das fachadas, divulgadas na internet (fonte: PM São Leopoldo).

A tentativa aparentemente foi de conferir ares germânicos ao prédio, homenageando uma realidade que não faz mais parte do dia-a-dia da cidade e nem da cultura da população. E como vimos anteriormente, nunca fez. O projeto se pretende 'tradicional', mas acaba afrontando os precedentes históricos da área central da cidade, antigamente caracterizada pelo colonial português e mais tarde pelo eclético influenciado por arquitetos e construtores alemães que atuaram na região.
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Em primeiro plano, o segundo prédio antigo da Unisinos, numa foto da década de 70. O prédio sofreu incêndio e foi inteiramente demolido ainda na década de 70, sendo este terreno o local onde se pretende construir a nova prefeitura, lado a lado com as construções históricas mais importantes da cidade. (Fonte: Album Sesquicentenário da Imigração Alemã)

É, ainda, de cair o queixo o local de implantação do dito projeto: lado a lado com o conjunto histórico mais importante da cidade. A interferência nesta área seria bastante problemática apenas considerando o já caótico trânsito da avenida, e o conflito de escalas gerado pelo novo edifício, em desarmonia com o conjunto construído. Mas o descrédito conferido a este conjunto histórico (o mais importante da cidade), com a presença de um exemplar arquitetônico fazendo piada com o enxaimel, torna-se um problema apavorante.
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Mais imagens das fachadas, divulgadas na internet (fonte: PM São Leopoldo).

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O enxaimel foi resposta à privação do acesso a materiais básicos, como pregos. Foi a forma adequada e vernacular de se conceber a estrutura de pequenas edificações, predominantemente nas áreas rurais. Cada arquitetura pertence ao seu contexto, portanto, não há sentido em 'imitar' na forma de parque temático, características próprias de uma época.

Afinal, por mais que se insista, não existe uma "ponte" que ligue a técnica construtiva enxaimel aos dias atuais, pois ela foi descartada já no início do século passado, quando com a chegada de novos materiais e técnicas e com a prosperidade da região. Foi abandonada em prol das construções de alvenaria, assim como estas dariam lugar ao concreto armado.

O meio acadêmico e profissional precisa ajudar a construir a imagem das cidades

Sabemos que a sociedade há muito está “deseducada” pelo sucesso turístico de Gramado com deste tipo de aberrações, e com as sandices do mercado imobiliário, interessado em lucrar com arquitetura barata e utilizando o fator “tradição” como forma de vender fácil aos mais desavisados. Mas, com tantos cursos de arquitetura que estão funcionando na região, e a quantidade de profissionais da arquitetura atuando na área, ONDE está o bom senso? E o conhecimento das cartas patrimoniais, e de tantos outros tratados nacionais e internacionais envolvendo intervenção em áreas históricas? É dever da classe profissional e meio acadêmico se manifestam contra este tipo de absurdo, afinal, o conhecimento técnico da área não pode continuar limitado ao seu próprio meio.
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Não podemos deixar nossas cidades adotarem estas soluções sem qualquer reflexão teórica e completamente alheios ao desenvolvimento da arquitetura contemporânea. Precisamos ser exigentes com os equipamentos públicos. São Leopoldo dará uma aula de provincianismo, se chegar a concretizar esta triste homenagem – que soa como uma verdadeira gozação com a história da cidade.
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O enxaimel teve sua importância dentro do seu ciclo histórico, e os exemplares existentes precisam ser preservados. Mas não podemos reduzir o passado a uma estética ‘temática’. Nem reduzir nosso momento atual a cópia de características antigas, sem problematização. Afinal, esse tipo de homenagem nada faz além de reduzir uma forma de construir a meros adornos de concreto ou madeira na fachada: é reduzir toda uma dimensão cultural a um mero fachadismo.
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Temos ainda a reforçar dois de nossos artigos anteriores, muito pertinentes a este caso:

- Pensar no presente como um legado para o futuro

-Continuidade histórica e arquitetura moderna em POA

E veja também um exemplo de homenagem ao passado muito bem resolvida.

Vale também a ressaltar que a idéia não é de forma alguma ofender pessoalmente qualquer um dos profissionais envolvidos na obra, que sequer conhecemos, e acreditamos que tiveram a melhor das intenções. A crítica de arquitetura é saudável e necessária para que haja uma produção realmente qualificada – o corporativismo profissional, que impede que exista um ambiente de crítica, tem se mostrado danoso para a qualidade da produção atual, tão carente de bons referenciais.

Buscamos apenas alertar contra a gravidade do crime contra o patrimônio que será cometido caso esta Prefeitura seja construída tal e qual foi apresentada. Basta entrar em contato com as fontes mais primárias, como as conhecidas Cartas Patrimoniais, para se ter uma boa ideia de que existem convenções previamente estabelecidas. Não precisamos reinventar a roda. Se a intenção é homenagear o passado, que as construções autênticas sejam preservadas e requalificadas!

A Prefeitura Art Déco de São Leopoldo, junto ao centro histórico. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr/2008)

Ainda há tempo de elaborar uma proposta adequada a nosso tempo e respeitando o entorno histórico, empregando todo o conhecimento construído existente sobre o assunto. Que sirva de exemplo o prédio art-deco da Prefeitura Municipal atual, bastante adequado pra época em que foi concebido.

Leia também:

- Notícia sobre a polêmica no site da Defender

-Artigos 1 e 2 do arquiteto Rafael Spindler

8 comentários:

  1. tenho certeza que de onde vc copiou parte destes textos não havia um aviso ridículo como essse.

    sinceramente amigo, se você não deseja que o conteúdo seja copiado, por favor, guarde-o embaixo da sua cama.

    abraço.

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  2. Caro visitante, não praticamos cópia ou plágio neste blog, e é nosso direito não liberar o uso do conteúdo.

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    Atenciosamente,
    Jorge

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  3. Cruzes, parece a prefeitura antiga tomando hormônios de crescimento... Faltou alguém botar bom-senso na cabeça de quem quer que tenha "encomendado" o estilo.

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  4. Ótimo post!

    Não sabia desse projeto da prefeitura, é uma pena essa tedência da criação de fakes nas nossas cidades. Como você disse, Gramado é o mais triste exemplo. É incrível essa "homenagem" forçada em contrapartida com o acaso a prédios e monumentos de valores realmente históricos, com falta de políticas especiais para a manutenção, preservação e divulgação dos bens públicos tombados. Sendo assim, uma atitude de contestar tal anomalia de projeto é louvável e deve ser amplificada.

    Falando sobre o teu comentário lá no blog. Eu adoro essa coluna que tu citou! Ela tem uma geometria totalmente diferenciada de tudo que é achado na cidade. Na verdade trata-se do Obelisco da Comunidade Sírio-Libanesa. Eles nos deram como presente na época da comemoração do centenário da Revolução Farroupilha. Infelizemente teve todas as suas placas roubadas (mesmo casa da esquecida Coluna Brasileira). Esse monumento é um dos próximos que vou postar.

    Grande abraço!

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  5. Eles até podem alegar "homenagem", mas no fundo é aquela idéia de pareceu europeu para os outros, "para inglês ver".

    O problema é que acho que nem isso conseguem nesse projeto, pois as traves estão ali de uma forma tão aleatória que nem sequer de longe imita a técnica em enxaimel.

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  6. Concordo com tudo que disse. Além do exemplo de SL, não posso deixar de lembrar as cidades que ainda possuem exemplares originais de casas em enxaimel por exemplo, mas não as valorizam. Pior ainda é o fato de usarem recursos públicos para a construção de um pórtico fake (nem preciso citar o nome da cidade que estou me referindo!)ao invés de investir no que ainda existe!

    Sem contar cidades que preferem um simulacro de construção sem referenciais do que preservar sua própria história... (idem!).

    São Leopoldo já pode ser considerada uma cidade global. Não vejo nenhum elemento em sua cultura, arquitetura ou configuração que remeta a cultura alemã.

    O prédio da prefeitura, se construído, ficará completamente descontextualizado. Uma pena.

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  7. Absurdo, sem comentários...

    Parece piada, de muito mal gosto, eu não posso crer que vão erguer uma bizarrice dessas naquele terreno.

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  8. parabéns, Jorge! excelente reflexão.

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