quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Caminhando por Brasília (ou como aprendi a amar nossa capital federal)

Como que brotando em meio ao cerrado, no "centro" geográfico do País, Brasília é conhecida amplamente como uma capital projetada. Mas apesar do coro que lhe fazem os críticos, Brasília não nasceu congelada e pronta - e muito menos ficou pasteurizada. O fato de ser projetada não a impediu de ter imaginário e mitologia próprias. Mas certamente lhe imputou uma identidade única e marcante.

Turista empolgadíssimo. Detalhe pra camiseta recalque Le Corbusier.

Brasília nasce em construções provisórias de madeira - algumas das quais resistem, teve seu apogeu no modernismo à brasileira em concreto armado, teve uma espécie de epílogo pós moderno com algumas obras de Niemeyer tardias e vive uma plena decadência da política urbana e de preservação. É nítida a pressão imobiliária para aprovação de um "plano de preservação" às avessas (o famigerado PPCUB) e o estranho não-protagonismo do IPHAN, órgão responsável pela tutela do projeto urbano que é tombado a nível nacional e reconhecido pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade.

Mas o texto não pretende falar dos problemas, que são inúmeros, mas sim dar vazão a algumas das impressões mais marcantes de uma passagem pela capital do Brasil.

Expectativas e Impressões

Brasília é uma das cidades paradigmáticas do urbanismo moderno. É impossível, portanto, visitá-la sem grandes expectativas - ainda mais quando se é estudante de arquitetura e urbanismo.

Cresci ouvindo críticas à cidade de Brasília. Fala-se muito dela como uma cidade árida, sem escala humana, projetada para carros. Uma cidade que foi construída isolada, de forma a desmobilizar as massas populares que poderiam influenciar os rumos políticos do País. Uma cidade quente, monótona e sem vida social.

Ao visitar Brasília, constatei que muitas das críticas tem um fundo de verdade. Mas a grande parte acabei concluindo que tem um fundo ainda maior de mentira!

Não dá pra entender Brasília buscando nela os defeitos que lhe imputam a partir da crítica fria do urbanismo moderno.

 Não dá pra resumir uma cidade ao seu projeto e suas intenções iniciais.

E principalmente:
Não dá pra vivenciar Brasília como uma cidade qualquer!



Confesso que achei a cidade assustadora no começo. Como pedestre de carteirinha, num primeiro momento me senti tolhido do meu modo tradicional de vivenciar uma cidade - caminhando pelas calçadas.

Marcou uma cena muito frustrante: enxergar a belíssima Catedral do eixo monumental a partir da janela do hotel, e sentir-se ao mesmo tempo muito próximo e muito distante dela. A catedral sempre fora uma das minhas obras preferidas do modernismo brasileiro, e tive que ficar alguns dias "namorando" o prédio de longe.

Outra cena frustrante era enxergar a esplanada do Museu Nacional repleta de pessoas - aliás, este é um dos espaços urbanos com maior vitalidade que já vi num centro cívico - e sentir-se impedido de chegar até lá.

Tão perto e tão longe.

O entroncamento viário do cruzamento do eixo monumental assustava, e me dava a impressão de que seria impossível passar por ele confortavelmente numa caminhada. Sentia-me na beira de uma autoestrada. E odiava Brasília por isso.

Aliado a esse sentimento de "pedestre acuado", experimentei um dia de pico no trânsito logo no dia de chegada, em que para chegar de um ponto ao outro da cidade levava-se algumas horas. O bastante para concluir que a cidade que deixava o pedestre contrariado não servia "nem para carros"!

Dia de trânsito caótico.

Mas felizmente consegui compreender Brasília. Comecei a me cativar ao visitar rapidamente o Congresso Nacional e a Esplanada dos Ministérios, iluminada num belo final de tarde. A qualidade da arquitetura amenizou aquela péssima primeira impressão, e fui ficando mais receptivo ao restante. A cidade já parecia mais interessante, apesar de tudo.

 
Final de tarde na Esplanada.

Brasília a pé

No outro dia, resolvi chegar de qualquer jeito a pé, saindo do hotel em direção a Catedral, num finalzinho de tarde.Imaginando que me sentiria um pedestre na borda de uma pista de corrida.

Acabei percebendo que a cidade era mais amigável a uma caminhada do que parecia inicialmente - bastava desistir de seguir pelos caminhos que faria se estivesse de carro, e encontrar trajetos agradáveis a escala humana. Alguns dos quais passando por dentro das quadras.

Espaço plenamente apropriado pela população.

Passando pela Rodoviária, que acontece na intersecção dos dois eixos, chega-se ao Museu Nacional, obra tardia de Oscar Niemeyer. Conhecia muitas críticas pela implantação em uma esplanada de concreto seco, mas acabei percebendo que essa é uma das maiores qualidades no espaço. A solução poderia ser equivocada em muitos locais, mas não ali - é como um incentivo ao pedestre para esquecer de 'calçadas' e 'caminhódromos' e apropriar-se integralmente do espaço. E funciona. O povo agora faz parte da Esplanada dos Ministérios, e reune-se ali todos os dias. Bingo!

Como as fotos eram muitas, a caminhada a tardinha se transformou numa incursão noturna à Esplanada dos Ministérios. Uma experiência arquitetônica quase transcedental. As edificações se impõem no breu da noite, e foi impossível não sentar no gramado pra ficar admirando o Congresso Nacional por algum tempo. Esquecendo, é claro, o material humano que trabalha lá dentro.

A sequência monumental de edificações públicas com identidade própria causa uma impressão muito forte. O conceito de "imaginabilidade" de Kevin Lynch foi aqui completamente contemplado. Até mesmo a Praça dos Três Poderes, imersa no breu da noite e sem um único foco de luz, acaba contribuindo com a sensação de engrandecimento dos prédios iluminados.




Vivenciar a arquitetura iluminada é uma experiência única.

Já agora de braços abertos para Brasília, fui descobrindo que, para o pedrestre, toda aquela "lógica" das vias expressas é dispensável. E que Brasília também é do pedestre. Mas não da forma como estamos acostumados.


Na cidade tradicional, a calçada cumpre o papel fundamental. Adjacente às fachadas, torna-se o espaço do pedestre por excelência.

Brasília segue uma proposta diferente. O pedestre não precisa de "caminhódromo" (embora alguns tenham sido construídos posteriormente sobre os espaços verdes). Todo o espaço gramado entre as edificações e nos imensos canteiros centrais pode ser usufruido pelo pedestre, que pode fazer seu próprio trajeto. Aliás, não é nada raro ver pedestres passeando, fazendo caminhada ou corrida no próprio gramado. No início causa estranheza a sensação de descampado e solidão.

O espaço do pedestre é tudo aquilo que não é via para carros ou área construída. Causa estranhamento e aparente falta de orientação, mas é apenas uma outra forma de vivenciar uma cidade. Nem melhor nem pior que a cidade tradicional. É apenas outra forma. E por incrível que pareça, funciona.


Nas superquadras reside a essência do urbanismo de Brasília, que supera o simples estigma da cidade modernista: Lucio Costa projetou bairros bucólicos, onde uma escala mais humana prevalece e a cidade vira um grande jardim. 

A altura dos prédios é bastante moderada e a quantidade de árvores de grande porte é considerável. O térreo liberado pelos pilotis devolve parte do espaço que seria privado ao acesso público (apesar dos tantos atentados contra essa característica). Reforça a ideia de que a cidade inteira é um grande "caminhódromo", muito além do cruzamento de grandes eixos viários.

Caminhando de fato pela cidade e vencendo os preconceitos iniciais, percebi que estava apaixonado por Brasília.

Pude entender os motivos das frequentes críticas, algumas das quais fundamentadas, outras fruto da incompreensão da proposta diferente da cidade. Encontrei, enfim, muito mais motivos para amá-la. 


Brasília é certamente uma cidade única, merecedora do título de Patrimônio da Humanidade.
E uma vez que o IPHAN demonstra completo desinteresse em participar ativamente da definição das diretrizes para preservá-la, cabe a sociedade adotar ativamente a posição de defesa. Brasília é da humanidade, e especialmente, de todos os brasileiros.

Jorge Luís Stocker Jr.
Movimento PPCUB pra Quem? em ação. Fonte.

Todas as imagens, com exceção da do PPCUB pra Quem? são do autor e só podem ser utilizadas com autorização expressa.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Patrimônio Cultural: Possibilidades e desafios da participação da sociedade nos inventários

Vivemos um momento único na trajetória da preservação do patrimônio cultural brasileiro. Até um passado recente o tema estava restrito apenas à esfera administrativa, e vinculado a iniciativas isoladas dos poderes públicos. Mas após o exemplo de movimentações pioneiras nas décadas de 70 e 80 e, posteriormente, com a redemocratização e a difusão de ações educativas e sensibilizadoras, há um crescente reconhecimento e integração das diferentes manifestações culturais no rol do patrimônio cultural nacional.

 Movimentação de pintura voluntária das edificações antigas, em Hamburgo Velho-RS na década de 80.

Com a dilatação do conceito de patrimônio cultural, inclusive do próprio patrimônio material, o tema passa aos poucos a constituir pauta cotidiana da própria sociedade civil. De agente passivo e espectador da ação pública, a sociedade coloca-se como principal ator e agente no processo de reconhecimento e preservação.
 Este novo momento traz imensas possibilidades e também enormes desafios.

Grupo Apuã, de Jaú-SP. Déc. 80.

Sociedade Civil x Inventários: a seleção dos bens culturais materiais a resguardar

O inventário evoluiu muito enquanto instrumento de conhecimento e preservação do patrimônio cultural. Potencializado na década de 80 por sua inclusão no artigo 216 da Constituição Federal, o instrumento vem se modificando e adaptando às mais diferentes circunstâncias.

O reconhecimento deste instrumento para efetivar a preservação ainda é problemático, uma vez que sujeito às intempéries políticas locais. Poucos municípios já tem legislação eficiente para respaldo legal de um inventário. Ainda menos assumem de forma concreta as pré-existências inventariadas como ferramenta do seu planejamento urbano. 

É possível afirmar, ainda, que nos trabalhos de inventário a visão apenas tecnicista continua prevalecendo. Inventários são contratados, realizados por uma equipe e prontamente dados por finalizados sem que haja consultas e estudos feitos com a comunidade local. Não por acaso, acabam engavetados e sem qualquer destino prático.


Campanha SOS Patrimônio Cultural NH, iniciativa do Coletivo Consciência Coletiva com apoio da oscip Defender, difunde a preservação informações através de informativo, intervenções urbanas e artísticas em Novo Hamburgo (RS).

Certo é que os estudos técnicos realizados por arquitetos, historiadores, sociólogos e afins são a base importante da pesquisa e devem ser tratados com toda a seriedade. Eles dão conta de valores importantíssimos, como o histórico, artístico, documental, paisagístico, entre outros. Estes são parâmetro suficiente para determinar a preservação, ainda que no momento determinados bens sejam eventualmente detestados pela sociedade. A valoração afetiva e o pertencimento podem, inclusive, começar a ser construídos a partir destes estudos.

A sociedade manifesta carinho e preocupação com a preservação. Manifestação organizada pela ARCCOV no Viaduto Otávio Rocha. FONTE: Jacqueline Custódio.

No entanto, é indispensável que os processos de seleção de bens culturais materiais prevejam uma etapa de participação da comunidade - isso se não for possível promover a participação permanente. A comunidade local é única portadora de informações importantes, detentora de saberes, experiências e mesmo dos caminhos para outras fontes. A comunidade que vive no local tem uma trajetória que precisa ser levada em consideração, detentora dos valores mais "imateriais" de cada bem edificado. Mesmo em centros urbanos globalizados, a comunidade é aquela que convive e se relaciona diariamente com aquele espaço, e é conhecedora, portanto, de suas deficiências e potencialidades.

Ação pelo Clube Concórdia em Santa Rosa. Sociedade articulada pela preservação de um bem cultural, com apoio das oscip Defender e Cidade Interativa. FONTE: Maria Inez Pedrozo.

É importante frisar que a participação da sociedade num processo de inventário não deve se dar através de um processo superficial. O diálogo deve ser constante, permanente e franco. Questionários pré-formatados certamente não são uma alternativa efetiva de ouvir a comunidade. Da mesma forma, não se pode transformar a participação da sociedade numa situação de "banca pública" de um inventário - onde se vota por maioria edificações que entram e que não entram. Também uma avaliação coletiva do processo científico de um inventário acaba por menosprezar tanto o estudo próprio técnico quanto a sabedoria popular, promovendo um processo artificial de democracia.

Jacques Dalibard fez, neste sentido, uma declaração bastante elucidativa: 
Só a democracia participativa, aliada à informações e educação, poderá assegurar que as escolhas certas serão utilizadas”.

Reside justamente na educação e na ausência de informação, o cerne da problemática que ainda envolve a preservação. Lidamos com um déficit histórico na educação, principalmente no que tange a cidadania. Temos um lapso ainda maior de informações a respeito de instrumentos de preservação, contrapartidas aos proprietários, deficiências e limitações destas e também das possibilidades. Num contexto de falta de noções de cidadania, de direitos urbanos, coletivos e difusos, da importância do patrimônio cultural e finalmente, das possibilidades para sua manutenção, não é nada surpreendente que a sociedade tema a proteção. É natural temer o que não se conhece. Difundir informações com coerência e serenidade é um dos maiores desafios que se impõem.

Recente protesto contra o tombamento em Santo Ângelo-RS, mostra "o outro lado": a sociedade também pode se articular contra a preservação quando se sente atingida e não tem as informações necessárias. É importante, ainda, lembrar que apesar da aparente oposição da sociedade, foi outra parcela da própria sociedade civil que solicitou o tombamento, devidamente embasada em preceitos constitucionais. FONTE DA IMAGEM: Jornal das Missões.

A sociedade também pode e tem tomado a frente na construção das políticas públicas de preservação e planejamento urbano, pautando a ação dos poderes públicos. Campanhas de conscientização, pedido de tombamentos e afins tem sido frequentes, a partir da organização de grupos de ação da própria comunidade. A catalogação de bens materiais de valor afetivo pras comunidades é possível através de trabalhos espontâneos destes grupos, com o uso de instrumentos como os Inventários Afetivos, que propusemos através da oscip Defender. Estes não pretendem sobrepor os estudos técnicos, mas complementá-los e demonstrar que a sociedade pode reconhecer mesmo bens que seriam desprezados por estudos técnicos. Também tem sido usados como um primeiro mapeamento em locais que sequer foram inventariados.

A caixa d'água do bairro Petrópolis, em Porto Alegre, certamente não apenas passaria despercebida de um inventário técnico, como poderia ser indicada para remoção. Execrada por muitos, era tida como ponto de referência para a população, rememorando o período de urbanização do bairro. A comunidade organizada insistiu e conseguiu a inclusão do bem no inventário oficial do município, após muita discussão. FONTE: Amigos da Rua Gonçalo de Carvalho.

Não devemos temer a participação popular, pois ela é essência do patrimônio. Precisamos, sim, um enorme esforço para que sejam trazidas à luz todas as informações necessárias, capacitando e qualificando a sociedade para o debate. A maturidade na interlocução entre os critérios técnicos e afetivos deve ser acompanhada de um enfrentamento corajoso da problemática econômica e das dificuldades e caminhos para a preservação. Os lados divergentes, somados, poderão conquistar enormes avanços na qualidade de vida, através da preservação.



A participação da sociedade, como vimos, traz imensas possibilidades e enormes desafios. De qualquer forma, sempre trará melhores desfechos do que o silêncio e inércia da mesma sociedade. Já vimos que marginalizar a sociedade do processo de preservação é um modelo mal sucedido em todos os lugares em que foi aplicado. Que possamos ter cada cidadão participando ativamente da construção deste debate!


sábado, 20 de abril de 2013

A propósito da demolição da SAT – Vida e morte do patrimônio modernista no litoral norte gaúcho


Crédito da imagem: Cesar Girardi


No início da semana a sociedade gaúcha foi pega de surpresa com uma trágica notícia: a demolição de parte da sede social da SAT – Sociedade Amigos de Tramandaí, clube social e esportivo litorâneo muito conhecido por turistas, veranistas e moradores da cidade.
  A foto das obras chocou centenas de pessoas que guardavam com carinho memórias vinculadas ao espaço - em especial os bailes de carnaval. Chocante também a perda daquele referencial paisagístico querido, presente, marcando com obras de arte uma esquina no caminho de quem desce do centro para a praia ou vice-e-versa.
A propósito do despropósito da demolição da SAT, e da desvalorização do patrimônio do movimento moderno da arquitetura no litoral norte, tentamos ser breves mas não conseguimos. Tentamos ser técnicos, mas o lado afetivo impôs-se. Deixemos que ele fale mais alto.

A Vida - Litoral Norte e Patrimônio Moderno

O litoral norte gaúcho passou a ter no início do século XX grande importância para a sociedade. Nesta época estava em gestação um dos fundamentos da cultura sul rio-grandense, os “veraneios”, que dali pra frente cada vez mais mobilizariam a população.
A cultura dos “veraneios”, de lazer e terapêuticos, conheceu as versões campestre e litorânea, mas foi a segunda que de fato consolidou-se. O litoral norte, pela proximidade com a região metropolitana de Porto Alegre, mostrou-se o espaço mais propício para o estabelecimento desta cultura.
As viagens até o litoral, que inicialmente assemelhavam-se a odisséias, aos poucos foram tornando-se mais práticas com o advento dos automóveis e das estradas de rodagem melhor conservadas. Com isso o litoral norte consolidou-se como “segunda casa” para milhares de gaúchos. Grandes extensões de cômoros de areia foram dando lugar a dezenas de balneários, os chalés de madeira enfileiravam-se lado a lado, o traçado de cidade-jardim complementava o clima festivo e descompromissado de “colônia de férias”.
Tramandaí já era um pequeno povoado de origem luso-açoriana nos primórdios, sem fins de lazer e balneabilidade, e por esse motivo desenvolve-se em relação ao rio. Com a chegada dos veranistas, o núcleo urbano inicial se consolida, e logo o até hoje lembrado “bondinho” passaria a fazer a ligação entre o núcleo urbano e a praia, distante alguns quilômetros.
O rápido desenvolvimento do litoral torna-se uma realidade, e a população cada vez mais aficcionada pelos veraneios. O clima agradável e a tranqüilidade eram uma perfeita válvula de escape das cidades em pleno crescimento da região metropolitana.

Crédito da imagem: André Huyer.

As cidades litorâneas também consolidam-se como espaços de sociabilidade, onde velhos amigos se encontram, onde moradores de cidades distantes podem conviver como vizinhos durante alguns meses, e onde as famílias dispersas por várias casas e cidades conseguiam afirmar-se como famílias, reunidas sob um só teto, convivendo unidas pelo menos por alguns momentos no ano.
As amizades, somadas a presença de elementos teuto-brasileiros bastante afeitos ao espírito associativo foram viabilizando o surgimento das famosas “sociedades de amigos”, específicas de cada balneário. As Sociedades passavam a ser o principal palco da sociabilidade do litoral, e com a união e objetivos em comum, diversas delas conheceram a prosperidade, crescendo em importância e em número de associados.
A infra-estrutura de lazer conquistada em conjunto acompanhava todo um esforço de cooperação para a promoção de eventos (em especial os carnavais). Não a toa a construção das sedes sociais envolvia sócios e não sócios, com amplas campanhas de arrecadação de fundos.
É possível dizer que a arquitetura moderna encontrou no litoral norte gaúcho um dos principais palcos para manifestar-se. Era mais complicado implantar-se uma nova arquitetura nas cidades já saturadas de edificações de todos os tipos, com um mercado de construção civil cada vez mais restrito a edificações sem tanto cuidado arquitetônico e com uma vinculação afetiva cada vez menor das pessoas com as cidades.
Já no litoral era diferente: loteamentos em plena implantação propiciaram a aplicação de teorias urbanísticas novas, como a Cidade-Jardim pragmática adaptada pelo Eng. Ubatuba de Faria em Imbé e Atlântida. A demanda de construção de residências unifamiliares, tema querido de todas as teorias arquitetônicas, era significativa, em contraponto a demanda de apartamentos padronizados na cidade grande.
Uma expressão única de arquitetura começou a operar-se no litoral norte gaúcho: um modernismo nosso, adaptado pelos nossos arquitetos ao programa, situações, clima e gosto do cliente. Tivemos até mesmo chalés de traço modernista, inspirados em volumetrias de Niemeyer e com direito a cobogós, brise-soleil e muxarabis. O modernismo consolidou-se como em nenhum outro local do Estado como expressão máxima da arquitetura de um período.
Em Tramandaí, a sede social da SAT aparece como uma obra-prima que marca o auge de todo este ciclo, nos anos 60 e 70. O que houve de experimentação moderna na sede social da SAPI, da vizinha Imbé, foi perfeitamente desenvolvido na sede social do clube Tramandaiense.

Sede da SAPI, na vizinha Imbé. Fotos: Jorge Luís Stocker Jr.

Aparentemente construído em etapas, a arquitetura modernista do prédio da SAT remete a escola carioca, com suas generosas curvas, planos inclinados, volumetria arrojada. O prédio prima pelo formalismo em cada detalhe, apresentando obras de arte agregadas aos planos de fachada. As fenestrações em planos ou pautando a forma complementam a obra arquitetônica.
É importante ressaltar, ainda, o quanto o projeto da sede social da SAT, em sua totalidade, dialoga com o “espírito” do lugar: prima pela horizontalidade, tão característica do litoral norte gaúcho. Com nossa extensão de praia aberta, enxergamos a linha do horizonte integralmente. Sem acidentes naturais, assentado numa enorme planície arenosa, o litoral norte teve sua vocação para o horizontal traduzida e codificada em sua arquitetura moderna.


Crédito da imagem: André Huyer.

A morte – demolição do prédio da SAT

A infeliz notícia da demolição da esquina da sede social da SAT difundiu-se pelas redes sociais de forma viral. Foram dezenas de compartilhamentos, e centenas de lamentos. Acreditamos que ninguém imaginaria a quantidade de pessoas que tinham vínculos afetivos com aquele espaço.
Na defesa do patrimônio cultural gaúcho, nos deparamos frequentemente (e quase diariamente) com perdas irreperáveis de bens históricos. Mas podemos afirmar que jamais vimos um caso com tanta repercussão.
A demolição do prédio da SAT agride. Mexe com memórias. E não são quaisquer memórias: são memórias queridas, memórias de veraneio. Os melhores momentos da vida. Uma instituição gaúcha.
Aquele ponto marcante na Avenida da Igreja não existe mais. O monumento da garça, único contraponto vertical a horizontalidade do prédio, permanece como triste retrato do que sobrou. Espera para breve ser acompanhada de uma torre de apartamentos.


Crédito da imagem: Marione Otto.


A justificativa é a de sempre: dificuldades financeiras. Ontem a SAT fazia campanhas de arrecadação para ajudar causas diversas. Hoje, parece incapaz de fazer uma campanha para resgatar a si própria. Em momento de crise,  poderia-se reforçar a identidade da SAT, resgatar o espírito associativo, a vinculação afetiva com o espaço. Mas certamente o caminho mais fácil não apresentava tantos obstáculos a superar. Caminho este que aparece como o primeiro passo pra liquidá-la: aquele palco de tantas memórias torna-se repentinamente uma área condominial.

São só 25% por cento do prédio demolidos. Nos números tão pouco, mas na paisagem e na memória, uma soma significativa. O que seria de um livro, cortados 25%? Como entender um filme do qual se corta a melhor parte? O que é da nossa história enquanto sociedade, quando apagamos um trecho importante para no lugar inserir palavrões vulgares?


Crédito da imagem: Marione Otto.

Sem esquecer da soma de “tantos por cento” do novo prédio, que pretende-se construir na esquina, descontextualizando o antigo em sua harmonia de obra de arte. Agredindo a paisagem de Tramandaí em um dos seus únicos pontos de referência coletiva.
O apoio de veranistas, moradores e até associados da SAT ao embargo da demolição, conquistado pela pronta atuação do Ministério Público após denúncia da oscip Defender e de outros cidadãos, é indicativo de que algo está errado - e de que algo poderia, pôde e poderá ser feito pra reverter este tipo de situação.

A morte do patrimônio moderno no litoral norte gaúcho é uma realidade diária, triste e agressiva. Não é inevitável. Acontece porque queremos, ou porque deixamos. Instrumentos de proteção consagrados existem: apenas estamos evitando. Enquanto isso alguém está tripudiando sobre nossas memórias, sobre nossa identidade.

Não tão privilegiado pela natureza, nosso litoral norte tem por vocação a sociabilidade. É ela que estamos atacando. Estamos esquecendo a vinculação afetiva e social, que é base pra cultura do veraneio, e que ao desprezá-la estamos condenando nossas cidades litorâneas. Que a perda do prédio da SAT sirva de lição para que a sociedade busque reconhece-se em sua própria dimensão cultural. Só assim poderá evoluir. Do contrário, seguiremos nos vendendo facilmente (e com contrapartida irrisória) a qualquer ideal de “progresso” fajuto, vazio e que nada representa em termos de desenvolvimento humano e social.


Jorge Luís Stocker Jr.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Porto Alegre: a passagem, a manifestação e o patrimônio cultural que pagou o pato

Porto Alegre amanheceu mais triste. O Paço dos Açorianos, prédio histórico tombado, teve suas vidraças estilhaçadas e as portas manchadas de tinta. Depredação que se soma às chagas deixadas pela desinstalação apressada de uma obra de arte há algum tempo atrás. Neste fogo cruzado entre o interesse público e a manifestação legítima, fica a constatação de que, de novo, o patrimônio cultural entrou de gaiato e pagou o pato no impasse.



Primeiramente, gostaria de ressaltar que a manifestação contra o aumento das passagens é legítima. E mais, é um protesto necessário. A radicalidade das manifestações é coerente (afinal, desconheço manifestação ordeira, pacífica e silenciosa que se preste a seus fins, que são justamente mobilizar e chamar a atenção para um tema).

Também não podemos esquecer que estamos falando de transporte público, e que o tema é importante. Trata-se da mobilidade urbana, a própria viabilização da vida na cidade. As pessoas não nascem dentro de carros...

Não devemos esquecer do crescente debate pela qualificação do transporte público como alternativa para solução dos problemas de trânsito. Tema que afeta a qualidade de vida da cidade. É impossível ignorar o quanto esse aumento absurdo afasta ainda mais de uma solução o crescente problema.

Ainda, é preciso considerar parte da população com dificuldades financeiras, que depende do transporte coletivo no seu dia-a-dia. Pessoas que conquistam cada centavo com muito esforço. E que vão precisar desembolsar uma quantia significativa por dia, dinheiro de que não dispõem, até para procurar emprego, estudar ou chegar a um posto de saúde.

E neste momento em que a imprensa explora o ato de vandalismo para desqualificar a causa, não podemos esquecer de duas omissões cumulativas do ente público através dos tempos: a negligência na promoção ampla e irrestrita de educação patrimonial e cidadania, e o desrespeito ocorrido com o mesmo prédio há algum tempo atrás, quando foram removidas estruturas de uma obra de arte deixando o prédio com chagas abertas e sensíveis, danificando o reboco. Depredação esta pouco alardeada e divulgada.

Acho importante ter este panorama antes de analisar o caso, pra não cair na cilada de estigmatizar uma movimentação popular legítima e desqualificá-la por conta do equívoco de poucos.

O Paço dos Açorianos, prédio histórico inaugurado em 1901, é tombado. Patrimônio de todos os porto-alegrenses. E mais: Porto Alegre é capital, e por tabela conta a história de todos os gaúchos e brasileiros. O prédio não é apenas um edifício institucional, é um patrimônio coletivo de grande importância histórica e cultural.

Faltou a consciência de alguns manifestantes de que o Paço não é "o prefeito", e nem "a" atual prefeitura. É um prédio público utilizado por estes entes públicos. Por mais infelizes e autoritárias que sejam as posições destes entes.

Na falta de educação patrimonial, não é de surpreender que a imagem do prédio não seja de algo importante pra população, com envolvimento pessoal e afetivo. A associação mais fácil é a do prédio com a atual administração. Por esse lado, não é nada surpreendente que ele seja o alvo dos ataques.

O fato é que, de novo, o patrimônio cultural pagou o pato. A primeira vez foi com a Fonte Talavera que, danificada, deu lugar a uma réplica duvidosa. O Paço, inaugurado em período remoto e com pouca ou nenhuma ligação com os atuais dirigentes da cidade, recebeu o troco pelas atitudes equivocadas e unilaterais de uma administração. Certamente não merecia - a cidade não merecia ser agredida.

A luta pelos direitos, e pela cidadania, deveria ser plena. E cidadania inclui consciência dos direitos difusos e coletivos - entre eles, o direito à memória, a preservação do patrimônio cultural. Um direito tão importante quanto o de mobilidade urbana de qualidade.

Entre uma agressão ao patrimônio e uma agressão aos direitos e aos cidadãos, fica essa sensação confusa de injustiça e de que algo está errado. Sobrou pro patrimônio.
Sobra uma tristeza com Porto Alegre. Mas ainda uma ponta de esperança. Que essa não morra...



quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Não sabemos o que é o nosso patrimônio cultural


A Casa Lauer em Campo Bom (RS) aparecia como atrativo turístico até recentemente, sendo divulgada em cartões postais e livros pela municipalidade. Foi demolida em 2012.
O Rio Grande do Sul é tido geralmente como referência nacional quanto a preservação de sua cultura e tradições. Fugindo dos aspectos mais temáticos e pitorescos, o que vemos na prática é o gigante descaso de um povo que desconhece sua própria história.

Convivemos diariamente com o rápido processo de desmonte do legado cultural arquitetônico que até nós chegou. Apesar da especificidade de cada caso, em geral o maior problema enfrentado é a falta de reconhecimento destes bens enquanto “patrimônio cultural” de forma oficial.

Pensão Jaeger, de Taquara (RS) - posta abaixo com autorização da prefeitura e MP em 2012 - sem consulta ao IPHAE-RS.
Assistimos o "bota abaixo" mesmo de bens históricos com reconhecimento afetivo e simbólico amplamente divulgado - que aparecem em livros, de site e panfletaria dos municípios, estando ainda nos seus “roteiros turísticos”. Tal fato demonstra o amadorismo que cerca a gestão do patrimônio cultural, jogada na mão de municipalidades despreparadas e desinteressadas.

Tombamento
Sem nem mesmo integrarem um inventário, ou com inventários sem respaldo e regulamentação em lei, muitos bens históricos inestimáveis vão desaparecendo como se nada representassem. São alvos fáceis da especulação. Os que são amplamente estudados acabam desaparecendo por falta de gestão, enquanto outros bens se perdem antes que haja oportunidade de servirem como base de pesquisa.

É desnecessário citar o quão pouco o instrumento “tombamento” tem sido utilizado. A quantidade de bens tombados é ínfima, mas bastante para a prática do absurdo de utilizá-los como legitimação da derrubada do que ainda não foi tombado. É como se o valor histórico não precedesse o tombamento e os bens "nascecem tombados"!
O tombamento em si nada salva, o que é visível pelos diversos casos de demolição ou arruinamento de bens tombados. Mas o tombamento segue sendo o instrumento com maior reconhecimento e regulamentação, sendo portanto praticamente imprescindível como passo inicial para busca de soluções para a recuperação. Inventários de proteção bem regulamentados podem ter o mesmo efeito, estando no entanto mais sujeitos às interpéries das mudanças de poder.

Tombamento por mérito ou por conveniência?
O mais impressionante, ainda, é que mesmo com mais de 70 anos de trajetória das políticas públicas de patrimônio cultural no Brasil, as municipalidades e órgãos públicos seguem tombando os bens apenas por pura conveniência, dificilmente ou nunca por mérito. Tomba-se e protege-se aquilo que as circunstâncias facilitam e viabilizam, e não aquilo que de fato expressa valores patrimoniais.

Além da falta de recursos humanos e mesmo do desinteresse para realizar os estudos que levantem e tombem tudo o que realmente tenha mérito, padecemos de um problema ainda maior: temos uma representação histórica e social impregnada de valores positivistas, motivo que nos leva ao fim das contas a ignorar quase completamente nuances da trajetória histórica do Estado. O que, para piorar, torna as diferentes localidades e grupos sociais completamente dissociados do quadro amplo da história estadual. A dissociação da história nacional é ainda mais inevitável, motivo pelo qual temos uma quantidade absurdamente pequena de tombamentos federais.
Seguimos no geral valorizando “grandes nomes” e “fatos” da história,  ignorando a riquíssima memória social que, cercada de legado material e imaterial, segue sem reconhecimento e em vias de desaparecimento.

Patrimônio arquitetônico marginalizado

Os diferentes processos sociais e econômicos formadores do Estado tal qual se encontra hoje são em geral desprezados e pouco estudados. Para falar apenas em patrimônio construído, são muitas as realidades já evidentes que carecem de maiores estudos de reconhecimento e principalmente, da consequente valorização e preservação. Outras tantas devem existir.

Prédio da Comissão de Terras em Santa Rosa, uma das "colônias novas": ao fundo a casa Zenni, demolida recentemente (2012) para instalação de uma agência da própria Caixa Econômica Federal. Ao que parece, um descumprimento do artigo 216 da Constituição pela própria Nação.

A arquitetura das colonizações estrangeiras na nossa terra seguem sumindo, em todas as suas expressões (arquitetura enxaimel dos imigrantes alemães, arquitetura em madeira dos italianos – todas muito reconhecidas e romantizadas mas pouco preservadas – e ainda a desconhecida arquitetura das “colônias novas” no noroeste do Estado, que seguiu diferentes características).
A arquitetura eclética influenciada por outras culturas também apresenta peculiaridades por aqui - seja a arquitetura de arquitetos eruditos alemães, italianos e outros; assim como a arquitetura "teuto-brasileira", praticada por descendentes de imigrantes alemães nas suas variações urbana e rural. Enquanto a primeira é protegida por tombamentos pontuais, graças a alguns estudos já empreendidos, a segunda segue ignorada.
A própria arquitetura colonial luso-brasileira, farta em reconhecimento teórico em todo Brasil desde a década de 30, é tão comum quanto desprotegida por todo território gaúcho.

Muito do casario luso-brasileiro (açoriano) do interior de Santo Antônio da Patrulha vai sumindo pela degradação. A única iniciativa pública foi um inventário do IPHAN há muitas décadas. Do inventário, já defasado, dezenas de bens já foram demolidos. (foto: Marcelo Fernandes)

A arquitetura religiosa das diferentes manifestações aqui existentes mereceria um olhar mais atento, no sentido em que vão sendo desfiguradas por encontrarem-se em pleno uso mas sem a tutela adequada. Destaca-se a quantidade imensa de templos do protestantismo histórico.
Pouco lembramos também de costumes que influenciaram grandes grupos sociais, como o hábito gaúcho de “veranear” (responsável inclusive por termos um período maior de férias de verão, deslocando nosso ano letivo em relação aos outros Estados!): no litoral norte em especial, está em vias de desaparecimento um acervo único de arquitetura em madeira, de introdução do modernismo, bungalows californianos e o próprio urbanismo influenciado pelo modelo de cidade-jardim que vai se descaracterizando.
Vale lembrar ainda, saindo da arquitetura, do patrimônio imaterial inestimável dos povos afro-brasileiros e indígenas, bem como de todos os descendentes de imigrantes.
Seguimos insistindo em modelos defasados de preservação, seguindo apenas as conveniências. Mantemos a história distante da realidade social, portanto sem relação íntima com a trajetória da própria população. Sem vontade política e sem envolvimento da sociedade não existe patrimônio cultural - apenas um legado em potencial que se esfacela. Enquanto desconhecermos nossa própria história seguiremos erradicando – com pouca ou nenhuma resistência – tudo aquilo que documenta nossa trajetória.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Projeto Memória Drops

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Este blog pretende trazer imagens e informações históricas do Rio Grande do Sul de forma breve, rápida e dinâmica.

Pretende-se, assim, promover de forma modesta a proteção do patrimônio cultural do Estado através da divulgação de suas potencialidades, ajudando na construção do imaginário deste legado.

Este blog complementa outro projeto, o blog Die Zeit , onde são discutidas as mesmas questões com mais profundidade.