quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Não sabemos o que é o nosso patrimônio cultural


A Casa Lauer em Campo Bom (RS) aparecia como atrativo turístico até recentemente, sendo divulgada em cartões postais e livros pela municipalidade. Foi demolida em 2012.
O Rio Grande do Sul é tido geralmente como referência nacional quanto a preservação de sua cultura e tradições. Fugindo dos aspectos mais temáticos e pitorescos, o que vemos na prática é o gigante descaso de um povo que desconhece sua própria história.

Convivemos diariamente com o rápido processo de desmonte do legado cultural arquitetônico que até nós chegou. Apesar da especificidade de cada caso, em geral o maior problema enfrentado é a falta de reconhecimento destes bens enquanto “patrimônio cultural” de forma oficial.

Pensão Jaeger, de Taquara (RS) - posta abaixo com autorização da prefeitura e MP em 2012 - sem consulta ao IPHAE-RS.
Assistimos o "bota abaixo" mesmo de bens históricos com reconhecimento afetivo e simbólico amplamente divulgado - que aparecem em livros, de site e panfletaria dos municípios, estando ainda nos seus “roteiros turísticos”. Tal fato demonstra o amadorismo que cerca a gestão do patrimônio cultural, jogada na mão de municipalidades despreparadas e desinteressadas.

Tombamento
Sem nem mesmo integrarem um inventário, ou com inventários sem respaldo e regulamentação em lei, muitos bens históricos inestimáveis vão desaparecendo como se nada representassem. São alvos fáceis da especulação. Os que são amplamente estudados acabam desaparecendo por falta de gestão, enquanto outros bens se perdem antes que haja oportunidade de servirem como base de pesquisa.

É desnecessário citar o quão pouco o instrumento “tombamento” tem sido utilizado. A quantidade de bens tombados é ínfima, mas bastante para a prática do absurdo de utilizá-los como legitimação da derrubada do que ainda não foi tombado. É como se o valor histórico não precedesse o tombamento e os bens "nascecem tombados"!
O tombamento em si nada salva, o que é visível pelos diversos casos de demolição ou arruinamento de bens tombados. Mas o tombamento segue sendo o instrumento com maior reconhecimento e regulamentação, sendo portanto praticamente imprescindível como passo inicial para busca de soluções para a recuperação. Inventários de proteção bem regulamentados podem ter o mesmo efeito, estando no entanto mais sujeitos às interpéries das mudanças de poder.

Tombamento por mérito ou por conveniência?
O mais impressionante, ainda, é que mesmo com mais de 70 anos de trajetória das políticas públicas de patrimônio cultural no Brasil, as municipalidades e órgãos públicos seguem tombando os bens apenas por pura conveniência, dificilmente ou nunca por mérito. Tomba-se e protege-se aquilo que as circunstâncias facilitam e viabilizam, e não aquilo que de fato expressa valores patrimoniais.

Além da falta de recursos humanos e mesmo do desinteresse para realizar os estudos que levantem e tombem tudo o que realmente tenha mérito, padecemos de um problema ainda maior: temos uma representação histórica e social impregnada de valores positivistas, motivo que nos leva ao fim das contas a ignorar quase completamente nuances da trajetória histórica do Estado. O que, para piorar, torna as diferentes localidades e grupos sociais completamente dissociados do quadro amplo da história estadual. A dissociação da história nacional é ainda mais inevitável, motivo pelo qual temos uma quantidade absurdamente pequena de tombamentos federais.
Seguimos no geral valorizando “grandes nomes” e “fatos” da história,  ignorando a riquíssima memória social que, cercada de legado material e imaterial, segue sem reconhecimento e em vias de desaparecimento.

Patrimônio arquitetônico marginalizado

Os diferentes processos sociais e econômicos formadores do Estado tal qual se encontra hoje são em geral desprezados e pouco estudados. Para falar apenas em patrimônio construído, são muitas as realidades já evidentes que carecem de maiores estudos de reconhecimento e principalmente, da consequente valorização e preservação. Outras tantas devem existir.

Prédio da Comissão de Terras em Santa Rosa, uma das "colônias novas": ao fundo a casa Zenni, demolida recentemente (2012) para instalação de uma agência da própria Caixa Econômica Federal. Ao que parece, um descumprimento do artigo 216 da Constituição pela própria Nação.

A arquitetura das colonizações estrangeiras na nossa terra seguem sumindo, em todas as suas expressões (arquitetura enxaimel dos imigrantes alemães, arquitetura em madeira dos italianos – todas muito reconhecidas e romantizadas mas pouco preservadas – e ainda a desconhecida arquitetura das “colônias novas” no noroeste do Estado, que seguiu diferentes características).
A arquitetura eclética influenciada por outras culturas também apresenta peculiaridades por aqui - seja a arquitetura de arquitetos eruditos alemães, italianos e outros; assim como a arquitetura "teuto-brasileira", praticada por descendentes de imigrantes alemães nas suas variações urbana e rural. Enquanto a primeira é protegida por tombamentos pontuais, graças a alguns estudos já empreendidos, a segunda segue ignorada.
A própria arquitetura colonial luso-brasileira, farta em reconhecimento teórico em todo Brasil desde a década de 30, é tão comum quanto desprotegida por todo território gaúcho.

Muito do casario luso-brasileiro (açoriano) do interior de Santo Antônio da Patrulha vai sumindo pela degradação. A única iniciativa pública foi um inventário do IPHAN há muitas décadas. Do inventário, já defasado, dezenas de bens já foram demolidos. (foto: Marcelo Fernandes)

A arquitetura religiosa das diferentes manifestações aqui existentes mereceria um olhar mais atento, no sentido em que vão sendo desfiguradas por encontrarem-se em pleno uso mas sem a tutela adequada. Destaca-se a quantidade imensa de templos do protestantismo histórico.
Pouco lembramos também de costumes que influenciaram grandes grupos sociais, como o hábito gaúcho de “veranear” (responsável inclusive por termos um período maior de férias de verão, deslocando nosso ano letivo em relação aos outros Estados!): no litoral norte em especial, está em vias de desaparecimento um acervo único de arquitetura em madeira, de introdução do modernismo, bungalows californianos e o próprio urbanismo influenciado pelo modelo de cidade-jardim que vai se descaracterizando.
Vale lembrar ainda, saindo da arquitetura, do patrimônio imaterial inestimável dos povos afro-brasileiros e indígenas, bem como de todos os descendentes de imigrantes.
Seguimos insistindo em modelos defasados de preservação, seguindo apenas as conveniências. Mantemos a história distante da realidade social, portanto sem relação íntima com a trajetória da própria população. Sem vontade política e sem envolvimento da sociedade não existe patrimônio cultural - apenas um legado em potencial que se esfacela. Enquanto desconhecermos nossa própria história seguiremos erradicando – com pouca ou nenhuma resistência – tudo aquilo que documenta nossa trajetória.