quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Rachadura não cancela o valor cultural!


Apesar da legislação bastante clara e contundente que, salvo raras excessões, existe (e na ausência desta, a clareza das próprias disposições constitucionais), na prática vemos muita flexibilização na defesa do patrimônio cultural sempre que há grandes interesses envolvidos.

O valor cultural: Onde se encontra, como se declara

O valor cultural de uma edificação pode ser encontrado nas mais diversas formas. No valor artístico de sua arquitetura, no valor documental de sua técnica construtiva ou distribuição espacial, no seu valor de referência histórica, no reconhecimento social que tem, na sua relevância como componente da paisagem urbana ou rural, entre tantos outros.

Este valor não é uma parte integrante do bem - é um valor a ele atribuído pela sociedade. Esta atribuição pode se dar através de estudos de órgãos especializados, de profissionais, de pesquisas acadêmicas ou ainda do reconhecimento empírico pela própria comunidade local.

Estes valores não decorrem da proteção, mas sim a proteção deve decorrer do reconhecimento destes valores. Apenas com o valor cultural formalmente declarado pode-se tentar preventivamente garantir a proteção legal do bem em questão. Este processo pode se dar através da sua inclusão em um inventário, e a inclusão deste inventário numa legislação de respaldo; através do tombamento do bem, indicação para preservação no Plano Diretor ou outros instrumentos que venham a ser adotados.

Vilão: o mau estado de conservação


Casa Engel Grünn, símbolo da luta da sociedade civil pelo patrimônio cultural de Novo Hamburgo. Sofre mau estado de conservação.

Um dos problemas mais recorrentes na preservação do patrimônio cultural é o mau estado de conservação. Muitas edificações passam décadas sem a manutenção adequada, ou mesmo sofrem intervenções equivocadas que aceleram o processo de degradação. Desta forma, encontram-se muitas vezes em situação de emergência, até em vias de desabamento.

Estes problemas seriam facilmente resolvidos com duas medidas: escoramento emergencial, para assegurar o que ainda se mantém íntegro; e intervenções recuperativas conforme o mais adequado a cada caso (restauração, conservação, consolidação, etc.).

Entra aí, obviamente, a questão dos custos. Um escoramento emergencial é um investimento mínimo, e que na omissão ou impossibilidade do proprietário, pode e deve ser efetuado pelo poder público, justificado pelo interesse público envolvido na preservação. Uma vez escorada a edificação, e completamente afastado o risco de queda, há tempo para que se busque soluções viáveis para a recuperação através de financiamentos, leis de incentivo à cultura, venda de potencial construtivo e afins.

É importante salientar que o mau estado de conservação não decorre do acaso, mas da falta de manutenção adequada por longo tempo (o que por si, já categoriza uma omissão) - ou de intervenções infelizes. É deplorável quando se solicita uma demolição argumentando pelo mau estado de conservação, uma vez que este mau estado decorre do abandono do próprio imóvel.

O custo de uma restauração é realmente bastante elevado, uma vez que lidamos com mão de obra altamente especializada (desde o projeto até a execução). Os bens que necessitam de uma profunda restauração, no entanto, costumam ser as exceções, uma vez que esmagadora maioria dos bens protegidos (ou que deveriam estar protegidos) são edificações mais simples, nas quais uma reciclagem de uso cairia muito bem e custaria o mesmo preço de uma nova edificação ou de uma reforma comum.

Quando uma rachadura (inexplicavelmente) cancela o valor cultural

Ainda que amplamente protegido pela legislação, o patrimônio cultural ainda enfrenta a fragilidade jurídica. É amplamente defendido um conservador "direito de propriedade absoluto", já inexistente na própria legislação (que relativiza o exercício do direito de propriedade à observância dos valores históricos, ambientais e afins - Código Civil, Art. 1.228 § 1º ).

Desta forma, o valor cultural é relativizado ao extremo, sendo completamente ignorado em toda sua plenitude. Um direito coletivo (à memória, ao patrimônio) é frequentemente sobreposto ou anulado por conta de uma rachadura. É como se todos aqueles valores imateriais vinculados à edificação desaparecessem.

Vejamos: um prédio em vias de desabamento pode sim, constituir um risco à vida dos transeuntes, sendo por este motivo uma questão emergencial evitar qualquer acidente. Ainda assim, não se pode ignorar o valor cultural atribuído a edificação. Ao invés de um simples laudo técnico alegando o perigo de desabamento, não deveria ser mais comum que o procedimento fosse a solicitação de um laudo técnico de escoramento da edificação arruinada?

Casa Koch no Centro Histórico de Hamburgo Velho, em Novo Hamburgo (RS) - posta abaixo com autorização da Comissão Municipal e da Secretaria de Cultura. A casa apresentava uma rachadura e, segundo representantes do poder público, não seria "nenhuma jóia rara". A imagem mostra manifestação da Defender e Coletivo Consciência Coletiva realizada no local.

Alegar que uma edificação corre risco de desabamento é muito fácil. É uma conclusão óbvia a de que, sem manutenção, tudo cairá um dia. Comprometer-se com a estabilidade de uma estrutura pretérita e abandonada é um risco que poucos profissionais gostariam de assumir. E nem deveriam.
Reconhecer um problema (o mau estado) em conjunto com o outro (a necessidade de manutenção - através de escoramento - do valor cultural) nos parece que seria a solução mais sensata e contempladora de todos os direitos e deveres envolvidos.

Pensão Jaeger, de Taquara (RS) - posta abaixo com todas as autorizações devidas devido ao "risco de desabamento".
Há quem se proponha a assinar laudos de mau estado de conservação, alegando irreversibilidade do problema. Como é impossível impedir a falta de coerência profissional, seria importante que fosse exigência a especialização em patrimônio cultural para emissão destes laudos, uma vez que trata-se de um conhecimento muito específico.Temos visto a ampla aceitação de laudos emitidos por engenheiro civil sem acompanhamento de arquiteto (sendo que patrimônio cultural é atribuição exclusiva do arquiteto e urbanista, segundo resolução do CAU e do próprio CONFEA - DN 075/2005, Art. 3º). O conhecimento estrutural do engenheiro civil é importante em alguns casos, mas deve estar efetivamente acompanhado do conhecimento das técnicas tradicionais e do próprio reconhecimento do valor cultural da edificação, que não integram os currículos de sua formação.

A falta de recursos para uma recuperação necessária também não deveria ser uma alegação facilmente aceita. Os proprietários podem, sim, comprovar falta de recursos. Mas lembremos que o poder público é co-responsável pela preservação do patrimônio cultural (Constituição Federal, art. 216). A justificativa de falta de recursos, quando vinda do poder público, carece de qualquer sentido. É o próprio poder público que deveria mediar e fomentar instrumentos de preservação (como a venda do potencial construtivo) para que o proprietário tenha condições de efetuar as obras necessárias sem ônus ao erário público. Bens de maior relevância justificam, inclusive, o investimento público direto.

Não se pode aceitar a perda de um bem de valor cultural sob justificativas tão rasas. O patrimônio é parte integrante da identidade local. Não são apenas paredes, mas a trajetória de uma comunidade. Por seus valores materiais e imateriais, e como integrante da paisagem e identidade de um município, amparado pela Constituição Federal e outras legislações específicas, o valor cultural não pode ser ignorado frente a uma - ou várias - rachaduras. Cicatrizes não condenam uma vida. Rachadura não cancela o valor cultural!