A
restauração de bens históricos é competência do profissional arquiteto e
urbanista, segundo a legislação existente e as resoluções internas do CAU. O
conhecimento técnico e teórico necessário para propor uma restauração, no entanto, ainda passa
longe de integrar efetivamente os currículos. Este conhecimento específico está restrito às
pós-graduações profissionalizantes, que ainda são poucas e, devido a geral não
exigência de especialização para assumir uma obra de restauro, tornam-se pouco
atrativas.
O efeito Dona Cecília está presente em muitas obras de restauração.
O
resultado deste lapso de informação e de formação é a agressão contínua a bens
patrimoniais de importância ímpar, que são submetidos a intervenções
equivocadas ou até desastrosas que aceleram sua degradação, desfiguram seu
aspecto volumétrico ou mesmo implicam praticamente na perda total do bem.
Antes de mais nada: Existem casos e casos
É
preciso sempre deixar muito claro que patrimônio cultural é diverso e não um
conceito fechado e absoluto. Existem diferentes tipos de valores, e diferentes
intensidades de importância destes valores, que podem ser atribuídos aos bens
culturais.
Existe,
portanto, aquele bem que pode ser inventariado como patrimônio cultural ainda
que não tenha grandes valores artísticos ou históricos - mas em contrapartida,
compõe paisagem ou pertence a uma tipologia característica do local. Estes bens
patrimoniais normalmente se prestam a receber intervenções mais profundas,
desde que mantenham suas características principais (volumetrias, ritmo de
fenestrações, etc).
E
existem aqueles bens que tem enorme relevância arquitetônica e/ou histórica,
bem como paisagística, documental, social e etc. que, por suas características
únicas, merecem muita prudência, sensibilidade e cuidados ao receberem
intervenções recuperativas. Isso não significa que não possam ser adaptados e
receber anexos, e sim que essas adaptações anexos devem ser elaboradas com todo
cuidado e seguindo diretrizes de preservação.
É
importante frisar que o senso comum de “manter apenas a fachada” é bastante
perigoso e equivocado. Faz-se necessário analisar sempre muito bem os valores de
cada bem histórico, para que se defina o que nele é importante e o que
eventualmente possa não ser.
Jogo dos 7, ou mais, erros.
Intervenções
desastradas
Recentemente o caso da
desfiguração de uma pintura religiosa promovida pela "dona Cecília" teve grande repercussão na mídia
internacional. A deformação de uma obra de arte é bastante fácil de reconhecer.
Já a deformação de obras de escultura e de arquitetura muitas vezes passam
despercebidas, devido aos poucos bons referenciais estéticos e culturais da
população.
O efeito "dona Cecilia" - na arte visual é fácil de reconhecer. Já tentou em edificações?
O tema
torna-se delicado e difícil pois, para o senso comum, qualquer obra
recuperativa seria melhor do que o abandono. O problema é que as obras
recuperativas equivocadas acabam sendo tão agressivas para a preservação do bem
histórico quanto o abandono. A analogia com a pintura anteriormente apresentada
é válida – será que esta “recuperação” salvou a pintura? Será que estas
reformas desastrosas salvam, de fato, os bens históricos?
O senso
comum considera restaurada a edificação que após algumas obras fica em aparente
bom estado, com tinta fresca colorida e “ bonita”. A questão, no entanto, é
muito mais complexa: além do conceito de “beleza” ser muito relativo, soluções
técnicas inadequadas, mesmo com intenção de recuperar, costumam inclusive
piorar a saúde da edificação.
Podemos citar como alguns
exemplos mais recorrentes o uso de reboco composto por cimento em edificações
incompatíveis (deixando as paredes rapidamente com reboco craquelado – o que
facilita infiltrações pluviais); uso de tintas inadequadas - como a latex acrílica ou até a antipixação - sufocando
as paredes antigas (que rapidamente se destacam da parede, gerando bolhas que
igualmente facilitam infiltrações); construção de lajes, proto-lajes e outros
tipos de coberturas ou anexos contíguos a edificação histórica com técnicas
inadequadas, gerando áreas de contato problemáticas que facilitam infiltrações,
exposição indevida de madeiramentos que passaram décadas escondidos por reboco,
expondo material frágil às intempéries, envernizamento de taipas de barro; aterramento de porões e fechamento dos respiros, causando umidade ascendente e prejudicando a longo prazo até mesmo as fundações, entre tantos outros inúmeros desastres.
Efeito do uso de tinta inadequada. Bonitinha, mas ordinária!
As intervenções inadequadas são
muito mais dispendiosas a longo prazo, visto que geram novas patologias e até
problemas estruturais graves que precisarão ser corrigidos; e principalmente, descaracterizam
o conteúdo cultural da edificação, agredindo o direito à memória de todos os
cidadãos. A descaracterização dos bens históricos protegidos por lei é
gravíssimo, pois torna questionável todo o esforço pela preservação, uma vez
que derruba diretamente o principal objetivo que é a manutenção da memória através do documento histórico (edificação e paisagem), servindo a toda a sociedade.
Reboco inadequado para paredes com rejunte a base de barro e cal e seu efeito...
Torna-se, portanto, urgente
e necessária a maior difusão do conhecimento técnico de restauração de bens
históricos, tanto para o projeto quanto para a execução das técnicas
tradicionais. Ainda mais urgente é a evolução das políticas de patrimônio cultural,
para que de fato contemplem e possibilitem que proprietários de imóveis
particulares tombados ou inventariados financiem a recuperação dos imóveis com
assessoramento técnico adequado. E o aparelhamento dos órgãos de preservação nacional e estaduais, permitindo que contribuam no processo de estabelecimento de diretrizes, aprovação de projetos e acompanhamento das obras mais importantes, uma vez que ainda é numericamente impossível que cada Prefeitura mantenha técnicos capacitados nesta área.
Enquanto a questão não evoluir, continuaremos nos deparando com inúmeras restaurações com o padrão "dona Cecília".