quinta-feira, 4 de novembro de 2010

As vaquinhas ensinam arquitetura - Cow Parade Porto Alegre 2010

O Cow Parade de Porto Alegre tem despertado atenções. É impossível visitar uma das cerca de 80 vaquinhas espalhadas pela cidade e não se deparar com vários visitantes, com máquinas digitais em punho, registrando as obras de arte. Essa "movimentação" pelo meio urbano é elogiável, por reconciliar o cotidiano da cidade com os espaços que ela ocupa. A inserção das "vacas" como pontos de referência temporários suscita o reconhecimento dos pontos de interesse (permanentes) situados nas cercanias.


(Vacaduto da Borges - Foto: Elis Regina Berndt/Nov 2010)

Visitar as vaquinhas é um passatempo divertido, e resgata o "passear pela cidade", hoje tão incomum na cidade pelos mais variados motivos. E acredite, também pode ser divertido dedicar alguns cliques e olhares aos prédios evidenciados pelo posicionamento de algumas vaquinhas - lugares que dizem muito sobre a identidade de Porto Alegre.
Para dar um gostinho, vamos sugerir algumas visitas... Mas com olhar atento, é possível ver muito mais coisas interessantes entre uma vaquinha e outra!

"27 - Cowversa comigo?" - Estação Mercado

A vaquinha Cowversa comigo está sob o arco da Estação Mercado. O entorno é um dos mais interessantes de Porto Alegre, a começar pelo próprio Mercado que dá nome a estação. Trata-se de um dos prédios mais antigos ainda existentes na cidade, inicialmente com apenas um pavimento e torreões laterais, acrescido no início do séc. XX de mais um andar, recebendo a linguagem mais eclética que hoje o caracteriza.


Aspecto do Mercado Público de Porto Alegre. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr/2010)


O mercado público é até hoje, palco do cotidiano da cidade, existindo uma vida própria muito característica. A reforma dos anos 90 deixou o ambiente bastante asséptico em relação ao que se espera deste tipo de espaço, mas em contrapartida preparou o Mercado para continuar participando do cotidiano da cidade no século XXI.


Ao fundo, o Palácio do Comércio, projetado por Joseph Lutzenberger. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)


Também vale a pena reparar no Palácio do Comércio, situado ao lado da Estação. Inaugurado em 1940, o prédio reflete a tendência geometrizante, inspirada no Art Déco, que influenciou boa parte da produção arquitetônica da cidade na época, além de exemplificar a resistência aos modelos modernos de matriz corbuseana. Ironicamente, foi projetadopor um arquiteto alemão (Joseph Lutzenberger), durante o governo de Getúlio Vargas, que tanto faria pela nacionalização forçada e pela repressão à cultura alemã, respingando estas consequências na atuação de alemães em profissões como engenharia e arquitetura.


O entorno do mercado é riquíssimo em prédios de diferentes momentos da cidade. (foto: Jorge Luís Stocker Jr.)

"76 - Vacaduto da Borges" - Borges de Medeiros

A obra Vacaduto da Borges, situada no início da Borges de Medeiros, deixa em evidência um quarteirão de primeira importância para a arquitetura moderna na cidade. Como principal prédio do conjunto, desponta o monumental Sulacap, com sua inconfundível cobertura piramidal. O prédio, projetado pelo arquiteto Arnaldo Gladosch, foi inaugurado em 1943 e já então encontrava oposição ferrenha no meio acadêmico e profissional da cidade, que começava a interessar-se pelo modernismo corbuseano. Apesar de retrógrado pelo fato de utilizar mais cheios do que vazios e dos elementos decorativos, o prédio exemplificava a revolução urbana moderna que se pretendia na área, através de plano diretor elaborado pelo mesmo Gladosch. O "quarteirão Masson", como era então chamado, apresentava aspecto monumental, com a marcação da esquina através da torre. Tudo em substituição ao casario colonial e ao traçado de quadras pré-existentes no local, com complicada divisão de terras que atravancava a verticalização da cidade.


Edifício Sulacap, projetado por Arnaldo Gladosch. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)


Gladosch conseguiu deixar sua marca neste entorno não apenas através do Sulacap e do Sul América, prédios de sua autoria, mas também na própria avenida, mais precisamente no Quarteirão Masson que até hoje representa a síntese soluções urbanas por ele defendidas, como o abrigo coberto para pedestres, as relações de escala e alturas e a própria modernidade expressa através do "futurismo" e da monumentalidade. É impossível visualizar o impactante "cânion" de prédios da Borges de Medeiros, com o coroamento minucioso do Sulacap, e não remeter-se a cenas como as do filme alemão Metrópolis, de Fritz Lang.
Os prédios do entorno representam diferentes momentos da absorção do ideario "moderno" na cidade de Porto Alegre.


Conjunto "Continente", construído em diferentes momentos (Ed. Planalto, Ed. Missões e Ed. Fronteira), visivelmente inspirado no Palácio Capanema, de Niemeyer, Lucio Costa e cia, denotando a influência do modernismo carioca na cidade. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)


"72 - O Pensamento" - Casa de Cultura Mario Quintana


O Pensamento (Foto: Elis Regina Berndt/2010)


O antigo Hotel Majestic, que hoje abriga a Casa de Cultura Mario Quintana, é de longe um dos locais mais bacanas da cidade para se visitar, não importa o motivo: cinema, teatro, exposições artísticas culturais, café, ou mesmo apenas um chimarrão no jardim. Ou mesmo visitar a vaquinha "O Pensamento" da Cow Parade.


A Travessa dos Cataventos, que divide os dois blocos do antigo Hotel Majestic. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

O projeto original, de Theo Wiederspahn, previa duas edificações idênticas, simétricas, unidas pelas duas cúpulas e pelas passarelas. A travessa interna, bastante ousada até para os dias atuais, acabou configurando-se em um dos espaços urbanos mais interessantes da capital gaúcha. É um espaço especial que a cidade soube apropriar-se.


Detalhe do Antigo Hotel Majestic, de Theo Wiederspahn (Foto: Jorge Luís Stocker Jr/2010)

O volume situado do lado leste, inaugurado em 1918, teve grande parte de suas características originais preservadas. O outro volume recebeu uma importante intervenção interna nos anos 90, quando foi convertido para Centro Cultural, com interessante uso de concreto armado nu.


A vista do "Jardim Joseph Lutzenberger" da CCMQ privilegia a vista da igreja das Dores, cuja fachada também é autoria de Theo Wiederspahn. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

"80 - Bochincho no Galpão da CowParade" - Santander Cultural


Antiga sede do Banco Nacional do Comércio, hoje Santander Cultural. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

Em frente ao Santander Cultural, na Praça da Alfândega, está situada a vaquinha denominada "Bochincho no Galpão da CowParade". O local é único, pelo "confronto" de dois modelos de edificação bancária: o antigo Banco Nacional do Comércio, hoje convertido em Santander Cultural, de feições fortemente clássicas, e o prédio modernista do antigo SulBanco, hoje Banco Santander.


Bochincho no Galpão da CowParade - Foto: Elis Regina Berndt/2010

O primeiro, teve projeto encomendado ao arquiteto Theo Wiederspahn, na época com um programa mais extenso. Problemas fariam com que Widerspahn falisse e se afastasse da obra, e seus estudos foram posteriormente adaptados por outros profissionais. Foi inaugurado em 1931. A riqueza dos conjuntos escultóricos, alguns dos quais executados pelo artista Fernando Corona, é um dos destaques da edificação, bem como a monumentalidade conferida pelos grandes pilares de ordem coríntia.


Inserção da antiga sede do Sulbanco a partir da rua General Câmara ("da ladeira"). (foto: Jorge Luís Stocker Jr/2010)

O segundo edifício, antiga sede do Sulbanco, inaugurado em 1943, passa despercebido aos que pouco conhecem sobre a arquitetura moderna. No entanto, é um dos principais exemplares da cidade. A adoção dos princípios modernistas, como o emprego do Brise-Soleil como elemento de proteção na fachada oeste (solução técnica mas de grande impacto visual) que permitiu grandes aberturas. O prédio marca o novo "programa" exigido pelas agências bancárias, um grande bloco verticalizado de escritório. A robustez exigida na época para sedes bancárias, porém, continua presente no pavimento térreo, revestido de granito preto. Vale ainda ressaltar a interessante articulação de materiais proposta pelo arquiteto Guido Trein - o metal do brise-soleil em contraste com os tijolos cerâmicos e a base de granito.

A interessante articulação de materiais do antigo Sulbanco. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

Texto: Jorge Luís Stocker Jr.

Leia também:

-"Arnaldo Gladosch - O Edifício e a Metrópole" (livro) - Anna Paula Cannez

- Arquitetura Moderna em Porto Alegre (livro) - Alberto Xavier / Ivan Mizoguchi

- Cow Parade Porto Alegre 2010

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Por que tem valor? Discutindo os critérios para a seleção de bens históricos - Parte I

Em qualquer tipo de estudo ou trabalho relacionado ao patrimônio construído, costuma ser nítida a ausência de critérios rígidos utilizados para afirmar, de modo definitivo, que um bem histórico é portador ou não de valores que determinem a necessidade de sua preservação. Deixando de lado qualquer tipo de dogmatismo, e munindo-se de conhecimentos, sensibilidade e principalmente bom senso, pode ser possível chegar a um resultado que seja o mais satisfatório possível.

Casa de caráter historicista, bastante tardia (1949), localizada entre Jammerthal e Joaneta, em Picada Café (RS): seu valor histórico poderia eventualmente ser contestado pela aplicação tardia destas formas históricas então já ultrapassadas. Mas esta adoção tardia de formas e da volumetria típica dos anos 10-30 nas cidades mais desenvolvidas de imigração alemã, pode ser bastante significativa historicamente: uma casa de caráter tão germânico, em plena campanha de nacionalização, e tão tradicional, em tempos de modernização, só seria possível em lugares muito isolados geograficamente. (Foto: Elis Regina Berndt/ Março 2010)

O patrimônio histórico construído tem uma inegável importância para as cidades, assunto que já discutimos em diversos artigos do Die Zeit. No entanto, como definir o que, de fato, é patrimônio? É nítido que não devemos nos restringir apenas aos bens históricos já tombados ou indicados para preservação. Afinal, o tombamento não determina o valor de um bem, apenas o declara oficialmente. Mas então, quais edificações são, de fato, portadoras de valores que a tornem merecedoras de proteção?

Casa neo-colonial, uma das últimas das tantas que caracterizaram o centro de Torres (RS): terá algum significado pra cidade? O sufocamento da casa pelas edificações lindeiras antecipa seu destino. (foto: Jorge Luís Stocker Jr/ Janeiro 2010)


Primeiramente, a única certeza que podemos ter é que não existe nenhuma resolução definitiva sobre o assunto. Na busca por embasamento, nos depararemos com a legislação, que no geral chega a ser bastante completa a respeito do tema, mas reticente e vaga quando aplicada em situações práticas; com as convenções e cartas patrimoniais, normalmente contraditórias quando aplicadas sem a análise dos seus contextos históricos, e ainda com a produção intelectual existente - que apesar de importantíssima e ótimo ponto de partida, é arriscada quando adotada sem a problematização necessária. Qualquer uma dessas fontes, adotada sem senso crítico e profunda reflexão, pode encorajar atitudes precipitadas. Num assunto onde tudo é tão subjetivo, é praticamente impossível adotar uma postura única e rígida que não analise cada caso como um caso único.
Com este artigo, pretendemos deixar nossa modesta contribuição para o tema, levantando questões, opiniões e exemplos para discutir formas e critérios que ao nosso ver deveriam nortear a seleção e preservação de bens históricos representativos do nosso patrimônio cultural.

O valor cultural

Mais conhecido de todos, e de maior aceitação, o valor cultural de um bem diz respeito a seu histórico e importância afetiva. Tem valor cultural os exemplares que ilustrem ("contem") uma história importante para a cidade, que tenham abrigado personalidades ou sejam características de algum grupo social, que representem uma cultura diferenciada (como a imigratória), e/ou que tenham importância social, como referencial afetivo. Também em alguns casos, pode ser considerado um exemplar que, ainda que hoje isolado, represente determinado período histórico de uma rua ou bairro.

É talvez o critério mais amplo, considerando-se que a "importância" de cada evento ou período histórico é muito relativa.


Casa eclética com a volumetria típica das regiões de imigração alemã, situada em Sander - bairro de Três Coroas (RS). Por muitos anos o estilo eclético foi considerado sem qualquer valor cultural e mera cópia de um estilo europeu. Em alguns casos ainda se mantém este preconceito, o que se torna um absurdo quando, como neste exemplo, é possível relacionar peculiaridades regionais tanto na volumetria quanto na espacialidade dos prédios. Sem pesquisa, é impossível determinar o valor de um bem! (foto: Jorge Luís Stocker Jr./ Agosto 2010)

Não podemos esquecer que, para conhecer o valor cultural de um prédio, é preciso bem mais do que uma simples visita de levantamento fotográfico e confecção imediata de laudo assinado por profissional legalmente habilitado (e algumas vezes, teoricamente bitolado): a pesquisa oral, documental e bibiliográfica é imprescindível para que se consiga obter dados que ajudem a contextualizar a edificação, sua origem e histórico. É impossível adivinhar o valor cultural de uma edificação através de uma fotografia ou ficha de inventário incompleta e portanto, é completamente hipócrita negar seu valor histórico sem que se tenha procedido uma pesquisa completa e competente. Decisões importantes como esta não podem ser tomadas precipitadamente, na pressa e de portas fechadas, por uma pessoa ou comissão responsável que não tenha respaldo representativo da sociedade e entidades interessadas no assunto.


As poucas edificações modernistas realmente significativas do ponto de vista arquitetônico, como a sede da Previdência Social em Sapiranga (RS), certamente tem um valor morfológico muito acentuado, embora ainda encontrem intensa contrariedade. No entanto, principalmente nas capitais, aos poucos vão encontrando sua valorização através da ampliação das pesquisas de mestrado e doutorado na área e do próprio distanciamento temporal que vai crescendo. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr/ Julho 2010)

O estado de conservação do bem em questão também costuma ser a justificativa para demolições. Oferecer risco aos transeuntes é realmente crítico, mas as providências tomadas devem vir em encontro à valorização e preservação do valor cultural do bem, e não sua erradicação através de demolição. Desta forma, ao invés da resolução de um problema, gera-se outro: um vácuo histórico e cultural irreversível para as nossas cidades já sequeladas e desmemoriadas. O mau estado de conservação pode prejudicar e colocar em risco o valor cultural, mas de modo algum o elimina. Não podemos esquecer ainda que, o próprio estado de ruínas de um edifício pode ser muito representativo e seu restauro ou consolidação enquanto ruína pode ser uma forma de educação patrimonial.



O prédio do antigo Evangeliches Stift e posteriormente Lar da Menina, em Novo Hamburgo, encontra-se em ruínas desde um incêndio nos anos 90, e se desintegrou lentamente ao longo dos anos. Felizmente foi tombado a nível municipal, como reconhecimento ao seu inestimável valor cultural - mesmo no atual estado de ruínas. Nos parece importante que não se reconstrua ou recomponha a fachada exatamente tal como se apresentava antes do incidente, como forma de educação patrimonial: seria demonstrar erroneamente que o patrimônio pode ser facilmente reconstruído, comprovando que erros como descaso e demolições são reversíveis posteriormente. As soluções para seu restauro deveriam, preferencialmente, recompor os volumes mas manter uma forma de valorizar esse arruinamento que faz parte da história da edificação. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./Agosto de 2010 e Acervo Pref. NH)

Necessário dizer, no contexto atual onde vemos é uma completa desfiguração da cidade tradicional, com a existência de apenas poucas migalhas históricas espalhadas pelas cidades, somos da opinião de que TODO e QUALQUER bem de interesse cultural que tenha chegado aos dias atuais em relativa integridade DEVE ser mantido. Ou, no mínimo, deve-se analisar muito profundamente a real necessidade de sua demolição. A quem ela beneficia? Que prejuízos ela traz? Frisando que a situação atual já é crítica, e que qualquer argumento que inclua a possibilidade de "congelamento da cidade" é fajuto (pois os prédios históricos são minoria inconteste) acreditamos ser praticamente impossível que a melhor opção seja a demolição em casos de bens realmente portadores de valor cultural.

O valor morfológico da arquitetura

A qualidade do projeto arquitetônico é, talvez, o conceito mais aceito e aplicado por arquitetos, e também no geral encontra bom respaldo popular. Quando se avalia o valor arquitetônico de uma edificação, se pesa a sua representatividade enquanto exemplar de determinado período estilístico, ou seja, sua filiação (ou reação) a determinada escola. Além de considerar-se a qualidade estética das fachadas, também deve ser avaliada a qualidade e/ou peculiaridade da distribuição espacial.


A Casa Soine, de 1914, situada em Dois Irmãos (RS) é um exemplar de inegável valor morfológico: apesar da relativa simplicidade, nota-se uma aplicação criteriosa e erudita de formas históricas. Tem também seu inestimável valor cultural, enquanto representante da arquitetura residencial em zonas de imigração teuta naquela década (Foto: Elis Regina Berndt/Dezembro 2009)

A planta-baixa das casas antigas, quando ainda reconhecíveis, podem ser uma fonte documental importantíssima para o entendimento das transformações econômicas e sociais. O espaço interno deve ser mantido sempre que possível, obviamente com a devida compatibilização com os novos usos. No entanto, como dificilmente é possível no caso de bens particulares e trocas constantes de usos, o mínimo a se fazer é documentar cada alteração introduzida. Tal precaução é de fácil execução e não se trata de nenhum exagero: é o mínimo a se exigir, em se tratando de prédios que chegaram até hoje em relativa integridade e que são, muitas vezes, os últimos representantes de determinados períodos.


O belo casarão Friedrich, exemplarmente bem conservado pela família, em Novo Hamburgo (RS). Hoje abriga um museu particular e mantém seu uso residencial, usos sustentáveis e que possibilitam a manutenção de sua integridade. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./Setembro 2010)

É preciso ter em mente que, quando trabalhamos com um prédio histórico, temos em mãos um documento valioso que é portador de informações. De fato um documento "vivo", no qual as alterações e modernizações podem e devem somar ainda mais valores. Justamente por isso devem ser feitas com cuidado, conhecimento e com a devido registro das intervenções e motivações, que deve ser exigido pelas comissões responsáveis . Afinal, profissionais entram e saem dos seus cargos e a informação não documentada poderá se perder definitivamente.


A Casa Kaiser é um dos mais valiosos bens históricos do município de Novo Hamburgo (RS). Situada em Hamburgo Velho, data aproximadamente de 1850, e não tem hoje qualquer proteção legal. Trata-se da única construção enxaimel que ainda apresenta-se na sua quase originalidade, mantendo tanto sua estrutura quanto seus interiores com pouquíssimas intervenções, devido a manutenção do uso residencial pela família até alguns anos atrás. Hoje encontra-se desocupada. Seria lamentável neste caso específico uma reciclagem de uso que desfigurasse seu interior, por se tratar da única edificação enxaimel da cidade e uma das únicas da região a manter-se praticamente original. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr. / Agosto 2010)

Os critérios cultural e morfológico, bem como os demais (técnico, paisagístico, funcional, reconhecimento teórico e popular, etc) se entrelaçam e se complementam, de forma que não se pode julgar a partir de apenas um ponto de vista. Nos próximos artigos, buscaremos discutir um pouco sobre os demais critérios. Deixe sua contribuição nos comentários!

Texto: Jorge Luís Stocker Jr.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Falando um pouco dos inventários...

A preservação do patrimônio cultural brasileiro encontra, no geral, empecilhos que já deveriam estar superados há muitas décadas. A falta de políticas municipais é o maior deles, e apenas reflete o ócio da sociedade na valorização do seu legado. O primeiro passo - inventariar o que existe - acaba sendo permeado de interesses políticos econômicos ou preconceitos ideológicos, impedindo uma correta valorização do patrimônio enquanto integrante e agente qualificador do espaço urbano.


Na cidade de Santa Maria do Herval (RS), a inexistência de qualquer tipo de levantamento torna frequente casos como este: edificações centenárias em técnica enxaimel são demolidas para dar lugar a prédios comuns da rotina imobiliária, que poderiam ser construídos em qualquer outra área livre da malha urbana. O patrimônio, que deveria articular o espaço urbano, some e dá lugar a falta de harmonia. (fotos: Elis Regina Berndt / 2008 e Jorge Luís Stocker Jr/2010)


Os inventários e seus critérios restritivos

O inventário do patrimônio cultural é sem dúvidas um importante instrumento: pode-se dizer que seja uma espécie de primeiro passo para o conhecimento das edificações e conjuntos importantes existentes no município. O produto do inventário é o conjunto de fichas-padrão, preenchidas com informações detalhadas específicas sobre a arquitetura e histórico de cada bem cultural, acompanhadas de levantamento fotográfico. Caso encontre o devido respaldo na legislação municipal e plano diretor, poderá se tornar o mais importante aliado na preservação e valorização do patrimônio cultural.

Quando o poder público toma a decisão de inventariar o legado arquitetônico, é recorrente que o trabalho seja feito pelo próprio corpo técnico das prefeituras. Este, embora devidamente capacitado, normalmente sofre a falta da autonomia necessária. Nestes casos, aparecem pressões de ordem política e econômica, alheias ao conhecimento científico, surgindo de critérios absurdos para a seleção das edificações: busca-se exemplares íntegros, sem alterações externas ou internas em relação ao estado original, e situadas em um entorno homogêneo ou harmônico. Busca-se, em suma, edificações em perfeito estado de conservação e, de preferência, aquelas cujos proprietários vejam a questão patrimonial com bons olhos e que "aceitem" ter seu bem tido como histórico.

Estes critérios, que seriam mais adequados para um passo maior, o tombamento municipal, acabam sendo adotados já para o filtro inicial, o inventário. Municípios com centenas de bens patrimoniais e conjuntos acabam limitando seu inventário a algumas dezenas de edificações, "as mais importantes e significativas". Com isto, limita-se ainda mais o universo de bens efetivamente tombados e protegidos integralmente: apenas aqueles "monumentais", segundo versam os antigos critérios, deveriam permanecer como monumentos históricos.
O inventário perde, então, o que deveria ser sua finalidade. Esperar-se-ia uma fonte completa de informações, devidamente mapeadas, a partir das quais seja possível separar e classificar os bens históricos por níveis de preservação (os que deveriam ser preservados na sua integridade, os que poderiam ser readequados internamente para novos usos com sensíveis alterações, ou mesmo os que poderiam ser desfigurados mantendo somente sua volumetria.)

Outro grande problema, é a adoção de critérios antiquados e preconceituosos para a seleção de bens. O inicialmente difamado estilo eclético já é hoje devidamente aceito como autêntico e histórico, no entanto, prédios pouco mais recentes que estes ainda encontram dificuldades. Pequenas cidades, cujo período de maior expressão foi influenciado pelo Art Deco, por exemplo, esbarram no desconhecimento da própria existência destas manifestações no município. Exemplares proto-modernos e do movimento moderno sequer são cogitados nas listagens. Isso se agrava pela inadequação das fichas padrão em relação as técnicas construtivas modernistas. A sua construção "muito recente" (embora alguns já datem dos anos 40) são a alegação mais comum quanto a exclusão destes bens nos inventários.


Duas edificações Art-Deco de Três Passos (RS). A cidade alcançou seu auge por volta dos anos 50, sendo característico da cidade este estilo, simplificado para o uso local. Não há registros de valorização deste legado. (fotos: Jorge Luís Stocker Jr/2010)

Os estilos historicistas, como o Missões / Mexicano / Californiano e os neo-medievais, encontram além da data de construção, o próprio preconceito cultivado dentro das escolas de arquitetura contra estes estilos. Por não se alinharem com a estética modernista vigente em suas épocas (majoritariamente até os anos 50), estes bens são considerados bregas, cenográficos, meros produtos imobiliários e desprovidos de qualquer valor histórico. No entanto, em muitos casos foram dentro destes estilos que surgiram os primeiros exemplares a apresentarem uma implantação diferenciada em relação ao lote, com recuos laterais ajardinados, aparecimento da garagem, aplicação de estratégias de conforto ambiental, técnica construtiva em concreto armado e uma série de novidades que são inegavalmente importantes e que justificam sua preservação. A própria existência de conjuntos homogêneos deste estilo deveria ser mais valorizada e levada em consideração, sob o risco de estarmos repetindo o mesmo erro cometido inicialmente contra o estilo eclético, e que abriu precedente para inúmeros crimes.


Esta casa em estilo missões, demolida em 2009 na cidade de Novo Hamburgo, ilustra a falta de atenção às edificações deste estilo. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr/2008)

Mas o que resta dizer, quando grande parte dos municípios não superou sequer este primeiro pequeno passo? Na maioria dos municípios inexiste sequer uma lista simples, quanto menos inventário ou tombamento. A meia dúzia de informações desencontradas existentes nas prefeituras destas cidades são arquivadas ou registradas nos mais diversos lugares e formatos e se perdem entre uma gestão e outra. A falta de bancos de dados digitais, constantemente atualizados e de fácil consulta, impedem a gestão adequada do patrimônio e dificultam sua própria divulgação.



Os inventários desmoralizados

Muitos municípios concluíram seu inventário do patrimônio cultural há bastante tempo. É o caso de cidades como Canoas, Sapiranga e Campo Bom (RS), que tem em comum o fato de terem realizado o inventário nos anos 90.

Era, então, ainda uma novidade a "abertura" dada pelos institutos de patrimônio às edificações relacionadas a imigração alemã, por exemplo. Mas, escassamente estudadas que eram até então, muitos exemplares seriam ignorados pela falta de informações que embasassem sua importância cultural.

A falta de respaldo na legislação municipal e a série de demolições que aconteceriam, muitas vezes durante o próprio processo de pesquisa, acabaram por desmoralizar estes levantamentos. Estes inventários não tem, hoje, nenhuma aplicação prática, sendo no máximo timidamente citados em planos diretores, audiências públicas e afins: o Inventário do Patrimônio Cultural, que deveria ser um instrumento importante, se torna um simples arquivo engavetado. Um mero e inutilizado conjunto de "registros históricos" do que a cidade TEVE até determinado ano, utilizados como forma de "cumprir o estatuto das cidades" com a manutenção de planos diretores fantasiosos e ineficientes, sem qualquer aplicabilidade no mundo real.


Exemplar do eclético típicos das áreas de colonização alemã, em Sapiranga (RS). Algumas vezes quando não estão demolidos, os bens inventariados encontram-se comprometidos em seu conteúdo histórico. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

Tais adjetivos podem ser atribuídos ao inventário da cidade de Campo Bom. O estudo deste inventário, procedido pelo autor como exercício acadêmico no ano de 2009, demonstra seu "resultado prático": dos já poucos 57 bens listados em 1996, 12 hoje já se encontram completamente demolidos e 07 severamente danificados (desfigurados ou em ruínas).


Casos como o da Casa Moraes de Campo Bom são recorrentes: apesar de inventariados, são demolidos sem qualquer iniciativa da Prefeitura ou mesmo manifestações da sociedade. Esta casa foi esquecida tão rapidamente quanto demolida. (Foto: Inventário do Patrimônio Cultural de Campo Bom/1996)

Restam, portanto, apenas 37 bens 'praticamente' conservados, embora isso se deva ao puro acaso - não há nada que os proteja da demolição. Não apenas a falta de informação, especulação imobilária ou desinteresse dos proprietários explica tal resultado: a ineficiência e falta de interesse do poder público, aliado a conivência da sociedade, completam o triste caso. Lamentavelmente, se trata de uma das primeiras colônias alemãs no Brasil, que hoje tem muito pouco a mostrar aos seus visitantes e muito pouco a cultivar entre seus moradores.

Um quadro que começa a mudar

Felizmente, nem tudo são lamentações: na cidade de Canoas (RS), após mais de uma década da conclusão do inventário, e depois de muitas demolições, o assunto começa finalmente a ser levado a sério pelo poder público local.

A Prefeitura de Canoas, desde 2009, tem buscado sistematicamente tombar os prédios históricos inventariados do município. A cidade, fragilizada em sua identidade pelo crescimento explosivo, pela proximidade com a capital e ainda pelas "chagas urbanas" abertas pela linha superficial do trensurb e pela BR-116, finalmente volta os olhares aos pequenos mas significativos exemplares do charme e da riqueza do seu patrimônio cultural.


Villa Nenê, recentemente tombada na cidade de Canoas (RS) (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

Já foram tombadas a Villa Mimosa, Villa Nenê, Casa dos Wittrock, Igreja Matriz, Antiga estação férrea e Casa dos Rosa, sendo dois destes bens de propriedade privada. São passos importantes e que não podem parar por aí. Ainda existem poucas, mas importantes edificações que deveriam ser preservadas, estejam elas inclusas ou não no inventário anteriormente produzido. São o pouco que restou e que, devidamente pensadas e incluídas em projetos eficientes, podem ser reapropriados pela memória afetiva da população local.



Casas históricas de Canoas (RS), ambas da década de 20 e que deveriam ser urgentemente valorizadas. São das poucas edificações ainda existentes representantes existentes de um período determinante para a história do município, e não podem ser marginalizadas no planejamento urbano. (fotos: Jorge Luís Stocker Jr/2010)

Texto: Jorge Luís Stocker Jr.
Imagens: Elis Regina Berndt e Jorge Luís Stocker Jr.

Leia também:

- Notícias de tombamentos em Canoas (RS): [ 1 - 2 - 3 - 4 - 5 ]

- Manual de inventário do IPHAE-RS

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Apagando a história do centro (histórico) - Porto Alegre (RS)

Reconhecido por sua riqueza cultural, o centro da cidade de Porto Alegre, capital gaúcha, foi recentemente re-batizado "Centro Histórico". A iniciativa, que busca associar a imagem do bairro ao seu patrimônio, parece ter se limitado apenas a uma mudança de nome.

Detalhe da Residência de Frederico Guilherme Jung, projeto de 1905 atribuído ao Arq. Hermann Otto Menchen. Um peculiar exemplar eclético com características neogóticas, completamente em ruínas, situado na Marechal Floriano, 520. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)

Quem passeia pelas ruas do centro de Porto Alegre com um olhar mais atento, depara-se com uma riqueza arquitetônica ímpar. São várias as características que identificam a arquitetura da cidade, formando um conjunto rico e heterogêneo que abrange as mais variadas manifestações arquitetônicas.

No perímetro central, a quantidade de bens tombados é, para padrões brasileiros, até considerável; estando muitos deles ocupados por centros culturais, museus, e outras instituições públicas. Mas além destes exemplares já reconhecidos do patrimônio cultural, existem centenas de edificações interessantes que merecem um olhar mais acurado e um estudo aprofundado de sua história.
Reconhecendo a diversidade desta riqueza, o poder público municipal de Porto Alegre recentemente rebatizou o bairro, alterando sua denominação para "CENTRO HISTÓRICO".


Detalhe do Palacete Amália Barcelos, projetado pelo Arq. Ricardo Wriedt em 1921. Situa-se na esquina da Duque de Caxias comVigário José Inácio. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr/2009)

A iniciativa é interessante e demonstra uma visão mais ampla do conceito de patrimônio cultural e de sítios históricos. Definitivamente, não se trata de um conjunto homogêneo. Há, no entanto, uma densidade considerável de prédios de interesse histórico, arquitetônico e cultural. São resquícios coloniais, convivendo com residências, palacetes e prédios ecléticos; além de interessantes edificações Art Deco, algumas poucas com influencia Art Nouveau, e grandes prédios proto-modernos e finalmente, modernistas.

Toda esta riqueza, supõe-se, estaria sendo valorizada através do reconhecimento como "Centro Histórico" da cidade. Assumindo a condição de um sítio histórico, o bairro deveria por consequência (e bom senso) ser urgentemente submetido a um extenso levantamento e pesquisa; resultando em um inventário e mapeamento digital completo - de preferência, procedido por profissionais com amplos conhecimentos na área e sem vínculos políticos. Um estudo que levasse em consideração as recentes descobertas das pesquisas acadêmicas, contemplando não apenas os remanescentes ecléticos, mas os tantos exemplares proto-modernos e modernistas que trazem peculiaridades e que definitivamente fazem parte da paisagem porto-alegrense.

No entanto, o que verificamos no dia-a-dia é justamente, o desprezo do poder público e a conivência da sociedade com a destruição ou desfiguração de importantes componentes do conjunto histórico. Tão celebrado e "vendido" aos turistas, o centro vai se tornando cada vez menos "histórico".

Deformação na Rua da Praia

Um recente caso aconteceu a um exemplar eclético da Rua da Praia, uma das vias públicas mais relevantes da cidade (e a mais emblemática durante a vigência do estilo eclético).


Vista da rua da Praia com o prédio antes de sua modificação. (foto cedida pelo forista Minuano/Skyscrapercity Brasil)

O prédio, indicado à esquerda, apresentava sua fachada relativamente bem conservada em relação a provável configuração original. Remontava ao período social mais importante da Rua da Praia, apresentando uma fachada eclética rica em detalhes e ornamentação. No entanto, apesar da inegável importância no contexto que ocupava, este prédio foi integralmente descaracterizado, sem qualquer reflexão ou manifestação pública no sentido de pesquisar mais profundamente sua importância ou comprovar sua importância no conjunto.

Prédio durante as obras, respeitando a legislação e critérios de segurança. Tudo "dentro da lei"(foto cedida pelo forista Minuano/Skyscrapercity Brasil)

O assombroso é que esta descaracterização se deu às claras, e sob o rigor da "lei": teria sido aprovada pelo setor competente. Oficializa-se, assim, mais um caso típico, onde estes lamentáveis ataques contra o patrimônio cultural são cometidos com a conivência e aprovação do poder público - constitucionalmente responsável por sua conservação e zelo.

Fica no ar, então, uma série de dúvidas. A primeira delas, é quanto a própria denominação de "CENTRO HISTÓRICO", visto que a desfiguração deste exemplar demonstra uma séria contradição a tal denominação.


A situação atual do prédio, completamente desfigurado.(foto cedida pelo forista Minuano/Skyscrapercity Brasil)

A descaracterização se mostra completamente desprovida de sentido: não adiciona nenhum valor arquitetônico contemporâneo ou funcionalidade. É visível que, além da péssima qualidade arquitetônica resultante desta intervenção, as modificações não foram introduzidas de forma a viabilizar novos usos. Percebe-se que sequer foram alteradas as aberturas: a intenção parece, salvo engano, simplesmente desfigurar uma edificação histórica, "tirar-lhe" qualquer valor que possa resultar numa futura proteção legal.

Uma edificação eclética, integrante do conjunto que caracteriza o Centro Histórico de Porto Alegre, tornou-se mais um exemplar qualquer, rotineiro, desprovido de qualquer valor, interesse ou significado; graças a conivência do poder público.

Estaria este prédio arrolado no inventário recentemente atualizado do centro? Caso estivesse, por que a modificação não foi barrada pelo poder público? Se não integrava a listagem, qual o critério adotado pelo poder público para a seleção das edificações? E qual, afinal, o tratamento que está sendo dispensado a este inventário - que importância está se atribuindo a este importante levantamento? Esta demolição foi aprovada pela comissão do patrimônio cultural?

Retrato do "abandono moral" do centro histórico. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr/2010)

É visível que a visão de patrimônio histórico limitado apenas aos bens tombados e desapropriados pelo poder público; constituindo pequenas ilhas ou "pontos de interesse" espalhados pela cidade, não é saudável para a compreensão do bairro como um todo, um conjunto (não apenas histórico, mas um "conjunto" de edificações que realmente faça sentido através de suas formas e usos).

Um retrato ineficiência desta visão se manifesta mesmo em bens tombados, mas de propriedade particular. Na rua Riachuelo: um dos últimos exemplares coloniais sucumbe e, apesar de estar tombado há décadas, não verifica-se iniciativas no sentido de valorizá-lo aos olhos da população, quanto menos, de recuperar sua integridade e sua utilidade.


Casa Ferreira de Azevedo: tombada, mas completamente abandonada e desfigurada, próxima a Igreja Nossa Senhora das Dores, na Rua Riachuelo. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2008)

Que tipo de centro histórico Porto Alegre merece, afinal?

Leia também:

- Link sobre a Casa Ferreira de Azevedo na Wikipedia;

- Veja o que já escrevemos sobre a importância de preservar o patrimônio cultural no meio urbano;

- Nosso artigo sobre a desfiguração do legado modernista de Porto Alegre;

- Livro: Arquitetura Erudita da Imigração Alemã no RS - Günter Weimer (fonte das informações das imagens 01 e 02)


terça-feira, 29 de junho de 2010

Questões patrimoniais em Up - Altas Aventuras, Toy Story 3 e Dona Cristina Perdeu a Memória

O meio do patrimônio cultural muitas vezes é pesado e repleto de ranço e mau humor. Há sempre alguém disposto a puxar o tapete, seja por motivos financeiros, políticos, ou até mesmo, pelo próprio "poder da palavra"(são os ditos "donos do patrimônio".)


Filmes como Toy Story 3 podem ser fonte riquíssima de interpretações lúdicas a respeito da importância da memória.(fonte: IMDB / Pixar Disney)

Em tempo de pluralidade de interpretações e de teorias, alguns conceitos apressados vão perdendo sua vez, as soluções rápidas e acríticas tomadas em outro contexto vão se mostrando ineficientes. Este ambiente líquido traz insegurança, mas também, um campo fértil e múltiplo para atuação. Nunca se viu tantos projetos de educação patrimonial, pesquisas, inventários e interesses voltados ao legado cultural. Apesar das muitas perdas e tristes episódios, um novo horizonte começa a se esboçar, graças aos trabalhos de "formiguinha" que começam a pipocar por aí, gerando tombamentos, inventários, rotas culturais e turísticas, centros de cultura, museus comunitários, e uma pluralidade de novos resultados interessantes.

Dentro dessa perspectiva, torna-se incompreensível o clima de ranço e baixa-estima mantido por alguns dos envolvidos na causa patrimonial. Buscamos com este artigo, dissolver um pouco desse peso, trazendo uma abordagem leve sobre o tema, brincando de certa forma, de problematizar questões patrimoniais a partir de produtos culturais.

Encontramos, despretenciosamente, interessantes referências a área de patrimônio cultural no roteiro de dois longa-metragens de animação. São eles Up - Altas Aventuras e Toy Story 3, ambos produzidos numa parceria da Pixar com a Disney. Como um contraponto local, incluímos o belíssimo curta-metragem Dona Cristina Perdeu a Memória, dirigido por Ana Luísa Azevedo (diretora do recente "Antes que o Mundo Acabe").

Atenção, os textos contém spoilers!

A Especulação Imobiliária e a memória afetiva em Up! - Altas Aventuras

O longa-metragem de animação em 3d UP! - Altas Aventuras foi lançado no ano de 2009, tornando-se uma das maiores bilheterias do ano. O filme conta a história de Carl Fredericksen, um idoso viúvo que vive com a memória de sua falecida esposa Ellie. O longa apresenta logo de início uma espécie de "resumo" da história do casal, e de forma divertida, sensibiliza para a cumplicidade e doçura dos momentos compartilhados juntos. Vemos que os dois se conhecem durante brincadeiras em uma casa abandonada. Pelo apego sentimental, adquirem esta casa após o casamento, e a transformam em um lar aconchegante - exatamente como o planejado quando se conheceram ainda crianças.


A casa do sr. Carl flutuando pela cidade - descontextualizada pela nova configuração urbana, só resta "partir" para um mundo de sonhos (fonte: IMDB / Pixar Disney)

Triste por perceber que a sua amada jamais realizou o sonho de conhecer a "Cachoeira dos Sonhos", Carl sofre com as lembranças, e também com um conflito econômico. Cercado por um grande empreendimento imobiliário, Carl acaba se desentendendo com um representante da construtora que pretende comprar sua casa (última restante no quarteirão) para demolir. Irritado, acaba agredindo o trabalhador e é punido com um mandato de interdição. Querem levar o senhor para o asilo, mas este consegue fugir, fazendo a casa voar com o material da época em que vendia balões! Sai então em busca da Cachoeira como forma de realizar postumamente o desejo de vida de sua parceira.



O casal reforma a casa onde se conheceu, transformando num lar aconchegante (fonte: IMDB / Pixar Disney)

Neste começo, já vemos uma situação recorrente nas nossas cidades: com a falta de controle do gabarito, que deveria dar-se através dos planos diretores, as cidades transformam-se em "canteiro de obras". A questão se descentraliza do desinteresse na manutenção das casas antigas, e se direciona para o valor que os terrenos adquirem. Explicamos: a Prefeitura "libera" construções com muitos pavimentos em uma área caracterizada por residências unifamiliares, onde anteriormente não havia esta liberdade. Esses terrenos passam ntão, por uma valorização que supera em muito o valor que uma pequena construção pode suprir com sua área útil. Trocando em miúdos: a partir do momento em que são declarados, através do plano diretor, integrantes de uma zona com grande índice de aproveitamento (IA), o terreno passa a valer uma fábula, pela nova possibilidade de construção vertical com muitos pavimentos, e em consequência, muito lucro com a venda de várias unidades. A manutenção das residências unifamiliares, e entre elas, as casas históricas destas regiões, se torna economicamente insustentável.

O filme mostra, ainda, a difícil relação entre o senhor Fredericksen e o jovem escoteiro Russel. Frutos de épocas e mentalidades completamente diferentes, são "forçados" a conviver a partir do momento em que o persistente garoto é acidentalmente "sequestrado", quando o casa do sr. Carl levanta vôo e ele encontra-se na varanda. A relação dos dois se desenvolve aos poucos, passando por momentos bastante simbólicos visualmente, com destaque para a dupla "carregando" juntos a casa flutuante (o legado afetivo do sr. Fredericksen), amarrados a cordas.


A dupla carregando a casa até o local dos sonhos de Ellie. (fonte: IMDB / Pixar Disney)

Após uma sucessão de acontecimentos, a casa do sr. Fredericksen volta ao chão e, com a queda, fica completamente bagunçada. Triste, o senhor senta-se em meio a bagunça e contempla o álbum que a esposa havia criado quando criança. Com amargura, contempla a seção que havia ao final: "Coisas que irei fazer". A esposa não havia vivido a aventura que sonhava na cachoeira dos Sonhos, mas Carl surpreende-se ao deparar-se com o contraponto, uma série de fotos do casal em momentos felizes que passaram juntos. Ellie deixou a mensagem do que havia, de fato, "feito": vivido uma aventura! Cabe frisar que o sr. Fredericksen apenas voltou a contemplar este álbum (re-analisar?) devido a provável confusão de seu imaginário, após tantos acontecimentos e novidades que abalaram o mundo tal qual ele conhecia (abalo expresso visualmente na casa bagunçada). A memória funcionando como uma troca e reinterpretação do passado em decorrência do momento atual. Essa "revisão" se completa quando Carl decide livrar-se do "peso" do mobiliário, permitindo que a casa volte a flutuar: o esquecimento fazendo parte do processo de memória e reinterpretação, funcionando como "selecionador" do que pode e o que não pode fazer sentido hoje.

Ao final do filme, finalmente e após muitas aventuras partilhadas juntos, o sr. Carl Fredericksen e o garoto Russel tornam-se grandes amigos. Numa cena bastante emblemática, Carl entrega para o garoto o "distintivo Ellie" - na verdade apenas uma tampinha de refrigerante, para ele repleta de significados. Significados valorizados também pelo garoto, agora que tinham tanto em comum e compartilhavam sua história.

O legado confiado a nova geração - Toy Story 3 3D


O terceiro capítulo da saga Toy Story foi recentemente lançado, tomando partido da tecnologia 3D. O filme, no entanto, não abusa dos recursos visuais oferecidos por esta linguagem: esqueça as cenas de vôos rasantes e de objetos voando no espectador, tão comuns nos demais filmes recentemente lançados. O foco aqui é o roteiro, muito divertido mas sensível e tocante: de brincadeira, corre por aí a declaração de que a Pixar teria utilizado a tecnologia 3d apenas para que o público não tenha vergonha de chorar no cinema, com os olhos escondidos atrás dos óculos 3d!


Encarando as mudanças: Andy é desafiado a decidir o destino das "tralhas". (fonte: IMDB / Pixar Disney)

O longa conta com muitos momentos de grande carga emocional e caráter simbólico. Um deles diz respeito aos brinquedos, lembranças da infância, confinados numa "caixa de memórias". Os brinquedos fazem de tudo para ser vistos, mas nada funciona: eles não fazem mais sentido na vida do agora jovem Andy.


O difícil momento de contemplar o "passado" e definir seu destino. (fonte: IMDB / Pixar Disney)

Num momento crítico, de mudança de cotidiano, o garoto enfrenta o desafio de selecionar o que vai levar para a faculdade, o que vai descartar e o que irá guardar no porão. Ou seja: o que vai continuar fazendo parte de sua vida; as lembranças que ficarão intocáveis e escondidas, longe de reinterpretações e resignificações da vida diária; e o que pretende esquecer de vez.

Por um descuido, a sacola onde o garoto confina os brinquedos (com exceção de Woody, que pretende levar pra faculdade) acaba sendo confundida com lixo por sua mãe. Os brinquedos sentem-se agora descartados, e, às escondidas, colocam-se numa caixa que é doada para a creche Sunnyside. Neste local, são destinados como brinquedos numa sala de crianças muito pequenas, onde são praticamente "torturados". Os novos donos (ainda) não entendem aquele "legado" que receberam: mordem, quebram, sujam. Os brinquedos não fazem sentido pra quem ainda não tem referências na memória.
Caíram em mãos despreparadas.


O que ainda faz sentido no momento atual? (fonte: IMDB / Pixar Disney)

Os brinquedos, procurando fugir daquele local onde estão presos, unem-se e conseguem, após alguns atritos, libertar-se. No entanto, por acidente vão parar novamente no lixo, sendo quase completamente incinerados. Salvam-se, no entanto, e conseguem voltar para a casa do garoto Andy a tempo de entrar na caixa de itens destinados a ficarem estocados no sótão.
Em seguida, depois de um bilhete escrito pelo brinquedo Woody, vem uma das cenas mais bonitas e tocantes do filme: o garoto toma coragem e decide doar aquele capítulo importante de sua infância para uma garotinha. Aqueles brinquedos não podem, de forma alguma, voltar a fazer sentido em sua própria vida, que entra em outra fase. Porém, ao invés de descartar ou enterrar no porão da memória, Andy deixa este legado cuidadosamente, para quem ele ainda pode ter importância! Relembrando sua infância, nomeia cada um dos brinquedos, deixando claro que a garota precisa "dar conta" de receber um legado tão importante pra ele (incluindo o boneco Woody, seu "melhor amigo" de infância).
E finalmente, os brinquedos (o legado afetivo do garoto) encontram novo dono (se tornam o legado afetivo, presente na vida cotidiana e atual de outra pessoa!).


Unindo gerações em Dona Cristina Perde a Memória


Um curta-metragem muito simples e tocante, fruto de um projeto da Casa de Cinema de Porto Alegre e dirigido pela gaúcha Ana Luísa Azevedo. Com o tempo da narrativa marcado visualmente pelo caminhar compassado de um patinho de brinquedo, o roteiro versa sobre os contatos do garoto Antônio com Dona Cristina. Interna de um lar de idosos, Dona Cristina sofre de perda de memória recente, o que a faz esquecer completamente de seus contatos anteriores com o garoto.


Separados por suas diferenças, o menino Antônio (Pedro Tergolina) e Dona Cristina (Lissy Brock). (fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre)

Confuso com o frequente esquecimento da senhora, Antônio diverte-se inventando novos nomes para si mesmo, enquanto tenta construir uma ponte de madeira para atravessar de bicileta uma pequena fenda do pátio. Aos poucos, porém, percebe que existe uma "lógica" por trás das memórias de dona Cristina, que embaralha informações verdadeiras com um toque de fantasia, como uma forma de tornar suas recordações reais de palpáveis (como quando confunde a história de sua família e seus nomes, atribuindo características de pessoas conhecidas a nomes fictícios e a outros internos do asilo).

Fechada em si mesmo e acuada pelo tratamento impessoal que recebe das enfermeiras, que a tratam como criança, a senhora ocupa seu tempo construindo a "barreira simbólica" que a divide do mundo e da geração atual. Porém, a partir dos contatos com Antônio, a senhora começa a descontruir essa barreira.


Antônio (Pedro Tergolina) "atravessa" a barreira construída por Dona Cristina (Lissy Brock). (fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre)

Ciente de suas limitações físicas, a senhora decide deixar para o menino Antônio todos seus "objetos de memória". Estes objetos asseguram a memória da senhora: com eles, é possível recordar de coisas passadas, que se tornariam cada vez mais nebulosas sem a presença física dessas "lembranças". Tal relação vem em encontro de tudo que dizemos frequentemente nos demais artigos: o legado material é importantíssimo, como meio de assegurar a manutenção da memória. Sem eles, a memória "perde-se" em si mesma e não é legada às novas gerações, e portanto, é desprovida de sentido para elas.

Ao "legar"/compartilhar suas lembranças com o menino Antônio, dona Cristina deixa para a nova geração um pouco de tudo aquilo que era importante para ela - e pede para que ele "guarde aquelas memórias", para o caso de ela esquecer: "Se eu precisar lembrar de alguma coisa, eu te procuro"!


Dona Cristina (Lissy Brock) confia seu legado ao menino Antônio (Pedro Tergolina). (fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre)

Eis o legado cultural em sua essência! E para completar o tocante caráter simbólico que pode ser extraído desta história,Dona Cristina constrói uma ponte, a partir do material da cerca que os separava (as diferenças). Com esta ajuda, e com o cuidado de quem sabe do valor afetivo dos objetos que carregava na cestinha da bicicleta, finalmente Antônio consegue atravessar a ponte sem cair! As gerações atuais, certamente, tem muito a aprender com as "donas Cristinas" que existem por aí. Somente com as "pontes" construídas através das próprias diferenças de trajetória e de contextos, a geração atual poderá deixar de cair e se espatifar, vítima da própria inexperiência que conduz aos frequentes erros!



Munido do legado de Dona Cristina (Lissy Brock), Antônio (Pedro Tergolina) deixa de cair. (fonte: Casa de Cinema de Porto Alegre)

Estas breves e despretenciosas análises não esgotam o tema, mas esperamos, possam ser ponto de partida para que novos olhares sejam lançados aos diversos produtos culturais com os quais temos contato (música, filmes, novelas...?) Patrimônio cultural não é apenas o saber acadêmico teórico existente nos livros, é parte do coditiano, das memórias e emoções. Por esta importância, está representado em muitos setores de nossas vidas!

Veja também:

- Assista o curta Dona Cristina perdeu a Memória no Porta Curtas.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Motivos para preservação do patrimônio e as destruições em Novo Hamburgo (RS)

Com políticas de preservação ineficazes ou inexistentes, edificações valiosas que identificam a região de imigração alemã do Rio Grande do Sul sucubem às pressões do mercado imobiliário.
ATENÇÃO: ESTE ARTIGO NÃO É CONTEÚDO LIVRE E SÓ PODE SER REPRODUZIDO TOTAL OU PARCIALMENTE SOB AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DOS AUTORES.
Preservar não (apenas) pelo belo, mas pelo conteúdo


Casa demolida em junho/2010, sob aprovação do poder público, no centro de Novo Hamburgo: uma das pioneiras do padrão volumétrico que marcaria as colônias alemãs e que surgiu na cidade. (foto: Jorge Luís Stocker Jr.)
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O patrimônio cultural brasileiro têm sido depredado e destruído dia após dia. Quando muito, ouvem-se lamúrias que buscam valorizar a "beleza"dos prédios antigos, em contraponto à padronização e falta de senso artístico da produção atual. Porém, mais do que um "regojizo" para o olhar, os prédios antigos desempenham muitas funções importantes dentro do tecido urbano.
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A mais importante das funções talvez seja a sua própria materialidade como "documento histórico". O prédio como um todo pode ser analisado de forma a encontrar respostas e perguntas sobre determinados períodos - as soluções construtivas revelam a procedência do conhecimento técnico e aspectos culturais da sociedade que o construiu, bem como o estágio de evolução tecnológica. Já a organização espacial diz muito sobre o modo de vida, aspectos sociais relevantes, entre outras. Até mesmo as modificações dos prédios através dos tempos, podem ser ricas fontes sobre as mudanças de valores estéticos, sociais e como eles se manifestaram na construção.
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Maquetes (reais ou virtuais), levantamentos, fotografias: nada pode substituir o valor de um prédio histórico na sua integridade, justamente por ser uma fonte não terceirizada, da qual podemos extrair informações e interpretações diretamente, sem resíduos interpretativos ou erros acumulados.
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Exemplo de conjunto importante, abandonado pelos olhares da sociedade. Situa-se na rua Marcílio Dias, em Novo Hamburgo (RS). Apesar do seu inestimável valor histórico, as casas deste padrão volumétrico típico das regiões de imigração alemã são desprezadas, e por este motivo, constantemente demolidas ao ponto de estarem próximas do desaparecimento. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)
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Considerando a cidade, novamente os prédios históricos desempenham importante papel, ainda que estejam deslocados de um conjunto homogêneo e isolados em suas características de época. Eles são responsáveis pela sensação de continuidade, esta "ponte" que nos permite conhecer e reconhecer o passado, tendo assim segurança para viver o atual e o futuro. Esta sensação agradável deriva da facilidade de entendimento: tudo aquilo que pode ser entendido e linearizado nos traz mais segurança. Uma cidade sem referenciais (sejam marcos históricos ou contemporâneros, monumentos, etc.) é carente de identidade, e traz por isto insegurança, dificuldades de localização, além da falta de "apego" pelo local de morada.
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É possível, através da preservação de exemplares autênticos, datar de forma confiável a existência de determinadas vias e sua configuração estética e social em determinadas épocas.
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O bem histórico é insubstituível na sua condição de documento
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É recorrente que, na atualidade, se faça amplos levantamentos históricos e fotográficos, além de séries de entrevistas orais que procuram "resgatar" a história das cidades. Desta forma, deixa-se "vestígios" e registros para posteriores pesquisas, visto que é provável a perda definitiva destas memórias e do aspecto destes prédios e lugares. Instrumentos de preservação previstos constitucionalmente, os inventários muitas vezes tem sido empregados com esta função reduzida de "deixar registros".
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O mais triste de tudo é que sabemos: história escrita e interpretada é sim, importantíssima, porém, não faz parte do cotidiano da população. Assim como "a cura para o câncer" não faz parte da pauta e do dia-a-dia de todos os moradores da cidade, também o estudo da história e seus meandros é irrelevante para estas pessoas. A memória da dona Maria, de fato e infelizmente, não vai interessar de forma alguma a dona Joana.
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O valor do patrimônio também reside no seu significado atual
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E é aí que reside um dos maiores valores do patrimônio cultural material: Ele pertence sim a um mundo que já não existe, nasceu no passado - porém, pode fazer sentido e pode ser vivenciado no mundo presente!
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A continuidade do patrimônio e sua inclusão no cotidiano da população torna possível que ele continue fazendo sentido através dos tempos, "referendando" sua própria conservação. Criando estes vínculos entre a sociedade atual e o legado pretérito, o passado passa a participar da vida cotidiana, e não apenas dos estudos históricos do meio acadêmico. Novamente relembramos que fotografias, maquetes, textos e vídeos podem ser analisados, mas nunca vivenciados como o patrimônio conservado em sua integridade.
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Uma das casas pioneiras neste padrão volumétrico, a Casa Richter é atualmente mantida de forma exemplar pelos proprietários. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr.)
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A demolição de um bem histórico pela mera pressão imobiliária, apesar de uma constante, não pode continuar sendo encarado como rotineiro e comum. O risco é o bem-estar da cidade como um todo e a fragilização de sua identidade: não apenas se perde um "belo prédio antigo", mas queima-se definitivamente uma série de informações possíveis. Perde-se, ainda, uma possibilidade de vínculo afetivo dos moradores com as raízes culturais do município.
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As casas germânicas da Colônia Alemã de São Leopoldo
(conhecidas como: casas de frontão recortado, casas de telhado simétrico, casas de sótão-frontão)

Ainda inexpressivos na bibliografia existente, e com aspectos e peculiaridades ansiando um estudo completo e adequado, as casas construídas na colônia alemã no período aproximadamente compreendido entre a década de 10 e o início da década de 40, tem sido sistematicamente destruídas.
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Antiga sociedade Frohsin, projetada pelo arquiteto alemão Theo Wiederspahn em 1909, é prova da influência da linguagem eclética erudita na difusão de uma arquitetura da germanidade. (foto: Elis Regina Berndt/2009)
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Alinhadas em certos aspectos com o ideário eclético, estas casas provavelmente foram influenciadas pela presença maciça de profissionais arquitetos e engenheiros de formação alemã na região de Porto Alegre deste período. São legítimas "construções da germanidade", pretendiam-se teuto-brasileiras na sua aparência. Apresentam uma inconfundível volumetria, marcada pela inclinação dos telhados (com consequente uso da área como sótão).
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O deslocamento da "fachada principal", do lado maior para o lado menor, diferencia esta arquitetura da praticada em áreas de pura influência luso-brasileira. O oitão do telhado é valorizado, normalmente com uso de platibandas que constituem-se um marcante frontão - lembrando algumas vezes as soluções ecléticas para meios urbanos medievais, onde a estreiteza dos lotes impossibilita um aproveitamento mais horizontal.
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Um dos poucos conjuntos homogêneos ainda existentes, apesar da desfiguração de algumas partes, na Av. São Miguel de Dois Irmãos (RS). Em primeiro plano, a casa Konradt. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)
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As variações são muitas, existindo exemplares extremamente decorados - alguns com elementos eruditos, outros, com interpretações nitidamente vernaculares; e também exemplares extremamente despojados e geometrizantes, sintonizados, com algum atraso, às vanguardas européias.
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Essa arquitetura relaciona-se com acontecimentos pré e pós primeira Guerra Mundial, e provavelmente, com o pangermanismo. e, praticamente, desaparece quando eclode a Segunda Guerra Mundial (e a consequente campanha maciça de nacionalização, repressão à cultura germânica e muitos outros episódios traumáticos que seguem mal contados e sempre omitidos). Esta "repressão nacionalista" é a provável causa do abandono moral destas casas, e seu esquecimento como portadoras de um conteúdo simbólico (o germanismo) e histórico (interpretação local do eclético).
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Os exemplares que seguem existindo, são no geral desvalorizados, desprezados em inventários e omitidos em listas de tombamentos. O poder público de cidades onde estas casas foram o "padrão" por décadas - como Campo Bom, Sapiranga, Ivoti e Novo Hamburgo - mostram-se indiferentes a sua importância, ignorando os poucos exemplares existentes e permitindo sua sumária demolição.
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Nos poucos casos em que foram recentemente valorizados alguns exemplares, isto se deve muito mais ao seus aspectos históricos (ter sido importante entreposto comercial, como no caso da Casa Amarela de Ivoti, por exemplo) do que um real conhecimento e valorização do inegável caráter simbólico.
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Construída em 1949 - curiosamente, pelo menos 03 anos após o "fim da arquitetura teuto-brasileira" declarada pelo arquiteto Gunter Weimer em seu trabalho Arquitetura Erudita da Imigração Alemã. Situado em Jammerthal, interior de Picada Café, este exemplar bastante tardio ilustra a penetração da volumetria e das formas deste estilo pela população em geral, sua aplicação em prédios expontâneos e a perenidade que teve em locais de menos repressão nacionalista. (Foto: Elis Regina Berndt/ Março 2010)
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O berço deste patrimônio e sua destruição - Novo Hamburgo e arredores
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Segundo o historiador Jean Roche, estas casas (que numa rápida análise, denominou "casas de telhado simétrico") teriam surgido em Novo Hamburgo. A informação, sem fontes, parece se confirmar pela datação das casas ainda encontradas (e vêm aí, reforçada, a importância da preserva dos prédios como documentos): a mais antiga encontrada por nós data de 1903. Trata-se da Casa Richter, que ainda não se afasta de forma tão óbvio da arquitetura luso-brasileira, mas já apresenta uma volumetria característica. Mais tarde, com o aperfeiçoamento do padrão, os telhados se tornariam ainda mais inclinados e a presença da janela central do sótão, ainda mais pronunciada.
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A demolição deste legado
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Engana-se quem pensa que a desvalorização do patrimônio das imigrações restringiu-se ao período da campanha nacionalista da Ditadura. Muitos dos últimos e importantes exemplares deste acervo tem sido demolidos nos últimos anos, alheios ao desenvolvimento turístico e desprezado pelos inventários culturais.
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Casa inteiramente demolida no mês de junho de 2010 no centro de Novo Hamburgo. Construída em 1915, consistia em uma das mais antigas ainda existentes deste padrão, e uma das poucas praticamente ainda intocadas por modificações posteriores. (foto: Jorge Luís Stocker Jr. / 2009)
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Um dos primeiros exemplares deste padrão foi recentemente demolido em Novo Hamburgo. A casa, cuja datação da fachada informava sua construção em 1913, considerou-se desvalorizada por seu mau estado de conservação. Sem quaisquer protestos de nenhum setor da sociedade, este inestimável patrimônio foi rapidamente demolido sob acato da lei.
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Casa Moraes, nas proximidades do sítio histórico de Hamburgo Velho, inteiramente demolida no último ano. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2008)
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Aliás, esta tem sido a característica comum aos recentes casos de dano ao patrimônio cultural em toda região: contrariando o princípio dos direitos difusos (entre eles, o interesse cultural da sociedade na continuidade destes prédios, o potencial turístico, entre outros), as demolições são legalizadas e referendadas por conselhos (que infelizmente, apesar do esforço, são pressionados e engessados pelo mercado imobiliário, interesses políticos e falta de apoio das entidades), órgãos preservacionistas, e pelo próprio poder público - a quem cabe, constitucionalmente, a tutela e preservação deste patrimônio.
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Localização da casa demolida, em imagem de 1952. (fonte: Acervo Gilberto Winter - www.bauderecordacoes.com.br)
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Com a autorização da própria lei, torna-se um ataque ao patrimônio cultural cometido a olhos vistos e acobertado pela legislação ineficiente e pela população desinteressada e ignorante de seus direitos e deveres. Ainda há quem atrasa-se no lento raciocínio de que constitui-se patrimônio histórico apenas os bens devidamente tombados.
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Para estes, a citação abaixo poderia ser bastante esclarecedora:

É perfeitamente cabível a proteção ao bem de valor cultural, esteja ou não tombado. Um bem pode ter acentuado valor cultural, mesmo que ainda não reconhecido ou até mesmo se negado pelo administrador. Como vimos, o tombamento é ato declaratório e não constitutivo desse valor: pressupõe esse valor; não é o valor cultural que decorre do tombamento.

Hugo Nigro Mazzilli (“A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo”, Ed. Saraiva, 17ª ed., SP 2004, p. 20)


Casa Trenz, de 1917, também foi recentemente demolida, em prejuízo da memória do município. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2008)
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As casas, que comprovavam a ligação de Novo Hamburgo com o advento deste tipo de construção, que se tornou padrão e marcou o visual de todas as colônias alemãs, simplesmente desaparecem para dar lugar a um prédio qualquer da rotina imobiliária. Fica ferida e perpetuamente danificada, assim, a própria IDENTIDADE do município de Novo Hamburgo.
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Comprovam esta lenta agonia outras recentes destruições: as casas Trenz, Fensterseifer e Moraes, todas integrantes do Inventário provisório e inteiramente demolidas. Constituíam-se, em alguns casos, no último testemunho histórico deste período em toda a rua ou no trecho em que se situavam e, certamente, seu desaparecimento empobrece o meio urbano do município, bem como invibiliza futuras pesquisas que procurem mapear este padrão construtivo.
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Casa Fensterseifer, de 1925, já em processo de demolição. Inteiramente demolida em Maio/2010. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr.)

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Texto: Jorge Luís Stocker Jr.
Imagens: Elis Regina Berndt e Jorge Luís Stocker Jr.

Veja também:

# Gunter Weimer: Arquitetura Erudita da Imigração Alemã (livro)
# Fotos de casas com este padrão volumétrico.

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