Esta “ingenuidade” de que tratamos nada mais é do que a falta de conhecimento. Na maioria das vezes, a falta de acesso ao conhecimento. E ingenuidade se perdoa.
Talvez com ingenuidade, a Prefeitura Municipal de São Leopoldo lançou em 2009 um projeto de Centro Administrativo para a cidade. Localizado no coração histórico da cidade, o prédio seria um nefasto vizinho do patrimônio cultural circundante: Um bloco em altura, que tanto mimetizava o prédio Art Déco da antiga Prefeitura quanto acrescentava traves enxaimel a fachada.
Imagem da fachada, divulgada na internet em 2010. (fonte: PM São Leopoldo).
Em suma, uma completa vergonha. Um projeto digno de figurar em programa humorístico, ou em alguma sátira arquitetônica de faculdade. Era difícil, à época, acreditar na veracidade da notícia. Mas ela estava lá, apresentando uma Prefeitura “vexaimel” que viria para resgatar a cultura alemã na cidade e “criar” um novo ponto turístico.
Os erros desta proposta foram aqui discutidos na ocasião, no artigo que pode ser acessado clicando aqui.
Mas o Die Zeit não discutiu sozinho. Fomos apenas uma pecinha entre muitos: Diretórios Acadêmicos de Arquitetura e Urbanismo das universidades Unisinos e Feevale; profissionais autônomos da região, Defender, IAB e o ICOMOS. Lotamos a Câmara de Vereadores.
Fomos educados e sucintos, apontando os erros da proposta, que aliás, eram muitos. O enxaimel era apenas a cereja no topo do bolo. As traves enxaimel estavam lá apenas para evidenciar a todos: “opa, alguma coisa está MUITO errada aí!”. Muitas vezes este tipo de “cereja” já fez falta, aliás. Quem sabe outras obras teriam chamado a atenção e pudéssemos ter evitado muitas atrocidades maiores.
Mas de qualquer forma, remover a cereja não muda o sabor e o formato do bolo. Tampouco girá-lo no prato. Essa analogia pobre explica a estratégia da Prefeitura Municipal para readequar o projeto, uma espécie de “cala a boca” aos que reclamavam:
Mudou a cara, mudou a posição no terreno – a essência é a mesma!
Analisando bem a edificação, vemos uma ilustração clara da decadência das obras públicas. Com dinheiro público e com a oportunidade de ouro de construir um programa especial (Prefeitura) em um território rico em informações para serem exploradas, vemos que a Prefeitura Municipal desiste do fiasco vexaimel para investir numa espécie de “torre residencial”.
A arquitetura é mais do que apenas sua funcionalidade e sua materialidade: ela também é o que parece e o que representa. Quando tratamos de um Paço Municipal, esse significado redobra.
A torre agora é "contemporânea" (sic), o projeto é o mesmo. Ele representa para a cidade o mesmo que tantas outras torres residenciais representam. Um nada. Um edifício sem o caráter que uma Prefeitura deveria ter.
Mas, se por um lado ter essa forma “residencial” poderia fazer o prédio se esconder entre o mar de mediocridade, tornando-se apenas discreto, por outro, implantá-la num local onde ainda predomina a escala colonial e praticamente ao lado de edificações históricas cruciais para o centro histórico da cidade, é completamente insano. Prejudica imensamente o perfil da rua, a ambiência histórica e a visual de entrada do município.
Como compatibilizar esta escala com o edifício proposto?
Parafraseando o jornalista cultural André Azevedo da Fonseca, é “como se um engraçadinho suprimisse um parágrafo da história da cidade e inserisse, por conta própria, palavrões e vulgaridades”. O efeito é o mesmo. Mas ao contrário do caso a que se referia Fonseca, aqui não estamos lidando com uma mera desfiguração de prédio histórico, mas de uma intervenção crítica no coração da cidade.
Os problemas são, enfim, nítidos e visíveis, mas agora não é ingenuidade. Está claro: com tantos órgãos importantes e profissionais gabaritados alertando sobre os problemas que esta obra da forma como é proposta irá acarretar, a Prefeitura Municipal de São Leopoldo segue a construção “a todo vapor”.
"Em São Leopoldo, a obra não pode parar". Publicado no Informe Especial do jornal Zero Hora em 12/01.
E aliás, faz questão de usar os veículos de comunicação da região para demonstrar seu poder. O prédio sai, não importa se faça chuva, sol ou vento; e daí se o Ministério Público nos processa. Não vamos parar pra pensar, agora é agir.
"Nova Prefeitura com Obra Adiantada", em reportagem típica de assessoria de imprensa publicada no Jornal VS.
Definitivamente isso não é ingenuidade. Hipocrisia? Só sei dizer que o Poder Público Municipal de São Leopoldo é privilegiado. Cada erro que comete ou pensa em cometer, lá está a sociedade, atenta, ativa, engajada. Lotando a Câmara! Que o digam as últimas duas audiências públicas, onde destaca-se a causa ambiental do Bosque de São Francisco de Assis – causa esta, que a Prefeitura parece tentar “transferir” para abafar o caso. Fico imaginando que salto de qualidade a região daria, se a sociedade reagisse sempre assim.
Mas com tanta participação, tanto engajamento, a contrapartida que a Prefeitura concede é pífia. Responde com o silêncio e a ausência nas audiências. Toma atitudes como *esta sem consultar a sociedade.
Temos uma série de ganhos particulares com consequentes prejuízos coletivos. A balança pende pra um lado. E o lado vitorioso, não está interessado com a qualidade de vida, com o entendimento e apreciação da cidade como um todo. Não está interessado na proteção das fragilizadas migalhas de ecossistemas e de patrimônio cultural. Não está interessada, enfim, em nada que torna São Leopoldo a cidade de São Leopoldo.
E fica apenas a tristeza e a revolta, ao nos depararmos com as reportagens que nos deixam claro que obra não para. Afinal, sabemos que certamente este erro não é obra da ingenuidade.
Corram, pois o que conhecemos por São Leopoldo está sumindo. E no que depender da Prefeitura e do 'cronograma da obra', será " a todo vapor".