quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Demolição em Nova Hartz – Hora de repensar ações? Patrimônio Histórico e Cultural do Vale do Sinos, Encosta da Serra e Vale do Paranhana

Neste final de ano, o meio cultural do Vale do Sinos foi abalado com a notícia da demolição de um bem histórico em processo de tombamento na cidade de Nova Hartz. O prédio já encontrava-se protegido pelas disposições do Plano Diretor da Cidade, por ser integrante do inventário do patrimônio cultural e devidamente mapeado no anexo do Plano. Construído na década de 20, estava há muito desvalorizado por seu entorno e algumas desfigurações da fachada, mas era um dos importantes resquícios históricos da área central da cidade que, com uma simples reciclagem arquitetônica, poderia ser utilizado para os mais diversos fins. O caso assusta, pois se não forem aplicadas as sanções previstas no Plano Diretor e no Código Ambiental, abrirá um triste precedente que pode possibilitar perdas muito mais lamentáveis na cidade. E também leva a pensar no problema da preservação no Vale do Sinos e região, motivação para as reflexões que seguem.

A casa em processo de tombamento demolida na última semana em Nova Hartz. Apesar de bastante modificada, era uma das últimas da malha urbana, o que justificava a importância de sua manutenção. (foto: Elis Regina Berndt / 2009)

O Patrimônio Histórico e Cultural curiosamente não integra a pauta diária das cidades do Vale do Sinos, Encosta da Serra e Paranhana. O caso é no mínimo estranho, considerando que suas antigas colônias abrigam um patrimônio riquíssimo e insubstituível, legado pela imigração alemã. São casas em técnica enxaimel, com peculiaridades que as tornam únicas em todo mundo; moinhos e atafonas, entre outras tipologias típicas locais. Tais edificações são suporte para a cultura imaterial composta pelo dialeto hunsrückisch, a culinária entre outros costumes passados de geração em geração.

No entanto, as iniciativas pela preservação deste patrimônio são pontuais e ineficientes, e encontram forte oposição popular. A velha discussão “pra quê preservar” ainda é constantemente repetida, num círculo vicioso interminável, e ignorando que a preservação do patrimônio cultural já é definido como uma obrigação dos poderes públicos colaborando com a sociedade desde a constituição de 1988. No Rio Grande do Sul, ainda existe disposição mais direcionada na Constituição Estadual. Essas discussões “chovem no molhado”, criam intrigas desnecessárias e equivalem a promover discussões intermináveis e seminários para conscientização da sociedade de que é errado matar, roubar, demonstrando longamente os motivos pelos quais essas agressões não devem ser cometidas.

A importância do patrimônio cultural é embasada num panorama amplo, tomando partido de conceitos de diferentes áreas. Existe o “direito” ao patrimônio cultural, que está incluído no mesmo direito ao meio ambiente, que é direito coletivo e difuso, típico da área judicial, e devidamente embasado na Constituição e nas leis promulgadas. Existe a importância sociológica do patrimônio cultural, como elemento que assegura a “identidade” cultural de determinados povos e locais. A importância social, porque portador de memórias coletivas. A importância “histórica” do patrimônio como documento e acesso ao passado, e que também se relaciona com a importância desta materialidade para o conhecimento da história da arquitetura. A relevância do patrimônio para o planejamento urbano, como estruturador de uma paisagem urbana dotada de significados e valores. A importância turística, justamente por ser o patrimônio portador de tantos valores e peculiaridades que, em conjunto com a paisagem natural, definem cada lugar como um espaço único. São muitos outros. Este conjunto de valores tão plurais talvez constituam num raciocínio muito sofisticado para um primeiro momento, e se perde na visão imediatista tão em voga, ficando inclusive escanteado nas discussões em geral.



Antigas atafonas como esta de Arroio da Bica, em Nova Hartz, correm sério risco de demolição caso se concretize a desmoralização do Plano Diretor - o que ocorrerá se não forem cumpridas as sanções previstas para demolições ilegais. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)

Apesar da consagrada e reconhecida importância do tema para a própria qualidade de vida, praticamente todas as energias (e recursos) ainda são gastas no sentido de discussão e convencimento a respeito da preservação. Agrava o fato que este discurso normalmente é focado apenas no lado emocional e na importância da manutenção da memória dos antepassados, de valores afetivos, etc. Numa sociedade de consumo, onde quem (des)educa continuamente é uma mídia voltada para a publicidade e para o imediatismo, é evidente que um conceito tão metafórico dificilmente encontre espaço.

Tantas energias despendidas poderiam ser gastas numa discussão mais adequada ao momento atual: o problema da conservação do patrimônio cultural, das políticas de patrimônio, das ações que podem trazer benefícios à coletividade. Afinal, já fazem muitas décadas que felizmente o País optou pela preservação do seu patrimônio, sendo inclusive signatário de inúmeras convenções internacionais e aplicando conceitos dessas em suas leis e portarias dos institutos competentes.

Assim, as energias desperdiçadas numa discussão inglória contra um mercado que obviamente quer o lucro absoluto acima de tudo (luta perdida, diga-se de passagem), pode se focar o raciocínio no problema real que se apresenta – encontrar os meios para a conservação dos prédios, benefícios e motivações para os proprietários que os mantiverem em boas condições, diretrizes para intervenções e reciclagem de prédios históricos para novos usos, formas de incluir o patrimônio no futuro da cidade. Afinal, vivemos numa sociedade baseada no pacto constitucional, e esta Constituição relativiza os direitos da propriedade privada à sua função social; e sendo o patrimônio cultural uma celebrada função social constante na mesma Constituição, qualquer discussão contrária à manutenção do patrimônio estará escapando do campo real e entrando numa sucessão de embates intermináveis entre gostos e vontades particulares, que em nada contribuem com o bem estar coletivo e com o interesse público.

Um dos principais problemas que temos em mãos é criar instrumentos eficientes para declaração do patrimônio cultural como tal, de forma oficial, instituindo as punições e os benefícios relacionados a estas edificações. Antes de tudo, que o planejamento urbano que consiga suprir as necessidades e demandas do futuro, valorizando o legado pretérito. Projetar o futuro dos conjuntos históricos e dos bens isolados, potencializando ao máximo sua manutenção, para que possa trazer benefícios sociais, à paisagem urbana, ao turismo e à cultura de cada município. Uma educação patrimonial que não perca tempo ensinando o porquê preservar, mas sim que ensine a problematizar o papel da sociedade e sua relação com o patrimônio, e a enxergar com os próprios olhos estes valores.



Conjunto histórico do Moinho Henkel do Arroio da Bica, em Nova Hartz (RS) (foto: Jorge Luís Stocker Jr/2011)

Os municípios do Vale do Sinos e o Paranhana precisam acordar para o legado ímpar que receberam e que, erradicado, pode vir a transformar a região num mero “espaço”, onde as pessoas vivem porque ali trabalham e necessitam, mas não porque se identificam. Não podemos chegar ao ponto de uma vida social sem significado e que prenuncia a morte do espaço urbano.

Não é novidade pra ninguém que normalmente o poder público é omisso nestas situações. Nestes casos quem deve tomar as rédeas é a própria sociedade - nós. Organizados, podemos cobrar dos órgãos responsáveis ou ainda agir por conta própria, atuando diretamente nas comunidades. Os maiores bons exemplos dos vales vem deste tipo de movimentação: tombamento da Casa Schmitt-Presser, em Hamburgo Velho, da Ponte de Ferro em São Leopoldo e do prédio da ACIT em Taquara, todas movimentações da sociedade articulada e conhecedora de seus direitos. Mas não podemos esquecer que essa “vanguarda” conquistou esses tombamentos há mais de 20 anos, e desde então, assistimos de forma passiva e em silêncio uma série de manifestações de descaso. A melhor educação patrimonial e meio de convencimento da população é por em prática a valorização do patrimônio cultural. É hora de trazer o assunto à pauta diária, não perder tempo com o “por quê preservar”, mas focar no problema legítimo: como e para quem preservar?

Jorge Luís Stocker Jr.


Leia também:

- Reportagem do Jornal NH Virtual sobre a demolição em Nova Hartz.
- Plano Diretor de Nova Hartz.
- Mapa de interesse cultural onde a casa é listada.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

SOCORRO! Patrimônio histórico em perigo – A casa da Praça 20 de Setembro em São Leopoldo



Velha conhecida da cidade, a casa eclética situada na esquina das ruas Saldanha da Gama com Osvaldo Aranha no centro de São Leopoldo sempre foi um marco referencial na história da cidade. A qualidade e delicadeza de sua modenatura, proporcional e bem desenhada, fazia um interessante contraste com outro prédio de inegável qualidade arquitetônica: a biblioteca pública, prédio modernista situado na Praça 20 de Setembro.
Os dois prédios, de distintas épocas, são de qualidade ímpar dentro das limitações do período e dos seus respectivos programas de necessidades. Duas formas diferentes de conceber arquitetura que, com a proximidade de um olhar, podiam ser fruídos durante um mesmo passeio pela Praça 20 de Setembro.



A excelente localização desta casa eclética também ajudou a colocá-la em evidência: trabalhada em aula durante algumas disciplinas do curso arquitetura da Unisinos, foi recentemente tema de trabalho de conclusão de curso de uma acadêmica da mesma instituição. A cidade acostumou-se a conviver com aquela vetusta construção que, na dignidade de sua fachada marcada pela pátina do tempo, jamais pintada com cores extravagantes ou tintas inadequadas, mantinha-se ainda que abandonada como um marco importante para a comunidade capilé.
As saliências das pilastras, que também ajudam a estruturar a fachada, e os demais ornamentos que emolduram as portas, janelas e principalmente a bela platibanda de frontão arredondado, através dos tempos juntaram tanta sujeira e fuligem quanto histórias e memórias. As casas antigas tem essa propriedade: elas não parecem “reter” a memória dentro de tantas reentrâncias e saliências?
Se os olhares de admiração asseguraram sua manutenção, não conseguiram assegurar contudo sua conservação. Muito degradada, a empresa de transportes coletivos proprietária do bem histórico decidiu solicitar sua demolição. O conselho de patrimônio foi sensato ao negar este pedido, visto que a casa além de tanta importância histórica, arquitetônica e social, está devidamente arrolada em um decreto municipal que impede sua demolição.

Houve acionamento do Ministério Público, mas o caso vem se arrastando há meses. O pior aconteceu: primeiro o desmoronamento parcial do telhado, que já se encontrava em avançada degradação. Após décadas sem nenhum investimento para conservação, é até impressionante a resistência apresentada pelo prédio. Com o tempo, cai todo o telhado, e também o frontão que dava frente para a praça. Quantas memórias não caíram juntas com aquele elemento?
Desde então, o bem agoniza a olhos vistos, diariamente. A casa, em um estado cada vez mais crítico, continua desmoronando, sem escoramento adequado para sua estrutura e sem proteção contra a incidência de chuvas. E principalmente: sofre a falta de luz para que consiga suportar as noites. Explica-se: é curiosamente apenas no breu noturno que as paredes costumam desabar.
A empresa proprietária segue com seu desejo de demolir o restante do imóvel, visando conseguir mais vagas para estacionamento. Não precisamos citar o quanto um muro branco abrigando vaga para um ônibus estacionado seria no mínimo impertinente em um ponto tão nobre e de frente para uma praça pública... E pior ainda, o quão grave seria perder este prédio histórico tão importante para a cidade? Abrindo mais um precedente que desmoraliza de vez a existência de uma legislação municipal e de um conselho de patrimônio?



Mas, que desfecho terá esta história? Os personagens em ação hoje são o tempo, implacável; a empresa proprietária e a promotoria de meio ambiente da cidade. Mas ainda faltam os principais protagonistas sempre que se fale de patrimônio cultural: a sociedade. Sociedade que é convocada pelo artigo 216 da Constituição a colaborar com o poder público pela preservação do patrimônio cultural. Sociedade que é “dona” do patrimônio cultural e dos valores intangíveis que estes bens imóveis são portadores. A população é a principal interessada na manutenção de sua história, de sua identidade, de sua paisagem urbana.


Recorrendo a pensamentos elitistas, podemos pensar que a população não está preparada para assumir um compromisso com seu patrimônio. De fato, hoje a população em geral não apenas está ocupada com o consumo, mas é incentivada a isso pela (des)educação continuada e diária da mídia.
No entanto, o grito de SOCORRO desta casa foi acolhido por 150 pessoas em apenas 2 dias de divulgação boca a boca. Lembramos que essas 150 pessoas também são sociedade. E que a luta continua a ser endossada por mais e mais pessoas, não só leopoldenses, mas brasileiros preocupados com a manutenção do patrimônio cultural.

O estado da casa é lamentável, mas ainda reversível. As partes caídas continuam rígidas e podem ser resgatadas. As ruínas podem ser consolidadas e devidamente restauradas. Não há dificuldades técnicas para a solução do caso: a única dificuldade é a falta que faz uma sociedade ativa, organizada e reivindicadora dos direitos coletivos e difusos. Uma sociedade que demonstre peso, que faça pressão para que valham estes direitos. Que veja que articular a preservação apenas por baixo dos panos não funciona, é preciso atuação transparente e às claras para que se possa congregar o máximo de indivíduos interessados. Penso que este é o caminho mais importante a ser trilhado, e é o que estamos tentando começar com este apelo. Ouçamos o grito de SOCORRO do nosso patrimônio!



Jorge Luís Stocker Jr.

A foto de abertura é de autoria de Sergio Matte. As demais são do autor em 20/11/2011.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Um pouco do estilo Art Déco

A introdução da arquitetura moderna no Brasil foi mais lenta, gradual e pluralizante do que pode parecer num primeiro momento. No “pacote” de modernização da arquitetura, o estilo Art Déco desempenhou um papel importantíssimo, trazendo para a paisagem urbana exemplares com inéditos ares renovados, inaugurando a estética do moderno, em contraponto ao estilo academicista baseado no clássico que era praticado até então.


Centro de Saúde de Novo Hamburgo (RS), da década de 40. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

O Surgimento do Art Déco

No início do século XX, as evoluções tecnológicas, principalmente da indústria, ocasionavam o sentimento de pertencer a uma época “moderna”, o que criou terreno para o surgimento de diferentes vertentes de arquitetura. As vanguardas arquitetônicas que vieram a gerar o que conhecemos como “Movimento Moderno”, porém, vinham repletas de uma carga ideológica mais complexa. Essas inovações conceituais e sociais, ideais de racionalização e o pleno uso das inovações técnicas não supriam a demanda da sociedade, que esperava uma arquitetura nova, mas com uma estética moderna de forma mais “festiva” e sem maiores pretensões.


Edifício Art Déco em Pelotas (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

O Art Déco encontra aí seu terreno, caracterizando-se como uma “decoração moderna”– uma arquitetura nova preocupada apenas com a estética, com as aparências, sem entrar na complexidade de uma revolução no modo de conceber a arquitetura. Seu surgimento é marcado pela Exposição Internacional das Artes Decorativas e Industriais Modernas de 1925, na França. A partir daí, foi difundido no mundo inteiro, sendo extensamente adotado nos Estados Unidos.

O antagonismo entre as vanguardas do movimento moderno, que buscavam uma revolução mais profunda no modo de morar e mesmo de conceber as cidades; e o descompromissado Art Déco, que não apresentava rompimento considerável com a arquitetura pretérita, foi inevitável. Le Corbusier em 1930 definia o Art Déco como "Este estilo 1925, besta, idiota, raplaplá que faz os medíocres ficarem babando de felicidade."


Cine Globo, em Três Passos (RS). A influência do Art Déco foi praticamente global, onde houvesse aglomeramentos urbanos. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

O confronto repetiu-se em terras brasileiras a partir dos anos 30, quando a paisagem urbana nacional começa a apresentar as contradições típicas desta época, que alinhavam lado a lado edificações de vertentes beaux-arts (ecletismo tardio), neo-coloniais, modernistas de vanguarda, Art Déco e outras tendências minoritárias. Ao contrário do movimento moderno, que tinha pretensões sociais, não houve um "movimento Art Déco": o estilo era adotado conforme a conveniência, por arquitetos e construtores que também praticavam o neo-colonial espanhol, o eclético tardio, etc.


Antigo Bar Olá Maracanã: Ares modernos no ambiente tradicional de Hamburgo Velho, em Novo Hamburgo (RS).

O Art Déco no Rio Grande do Sul

Em terras gaúchas, apesar da existência de exemplares anteriores, a introdução estilo Art Déco é marcado pela Exposição do Centenário da Revolução Farroupilha em Porto Alegre, em 1935. A grande maioria dos pavilhões temporários construídos no atual Parque Farroupilha (que herdou o nome e parte do traçado da exposição) aplicava este estilo.


Os pavihões da Exposição do Centenário Farroupilha, a grande maioria em Art Déco. (fonte: Arquitetura Comemorativa: Exposição do Centenário Farroupilha)

A partir dessa exposição, o estilo difundiu-se de forma rápida por todos os recantos do estado. O gosto “moderno”, a busca por linhas simples e geometrizantes, com a articulação eficiente da horizontalidade com a verticalidade, veio a calhar com o início da verticalização das cidades e com a adoção de uma nova referência cultural: os Estados Unidos. A imitação do american way of life, difundido através do cinema e das publicações, sacramentou o estilo Art Déco. Sua influência foi por algum tempo quase que regra na arquitetura oficial, onde não encontrava a concorrência das vertentes neo-coloniais, que a nível local limitaram-se a arquitetura residencial. Os novos programas que surgiam, como os cinemas, também foram construídos majoritariamente no estilo.


Grupo Escolar Joaquim Caetano da Silva, em Jaguarão (RS)

São muitos os exemplares de arquitetura oficial que passaram a difundir-se por todo o Brasil, sendo os mais difundidos, as sedes de agências dos Correios e Grupos Escolares Estaduais. Estes passavam a apresentar a arquitetura Art Déco quase como regra. As edificações públicas municipais deste período também são normalmente influenciadas por este estilo, sendo as obras municipais de Porto Alegre exemplares bastante típicos, projetados pelo Arq. Cristiano de La Pax Gelbert.

Grupo Escolar Visconde de São Leopoldo, em São Leopoldo (RS)

Típico deste estilo foi o revestimento com reboco de cimento penteado – “cirex”, com seu característico brilho quando nele incide a luz solar. Estes revestimentos devido a porosidade são de fácil degradação, ficando com aspecto sujo da fuligem que absorvem, e são pintados sem critérios com tintas comuns.


Prédio Art Déco harmonicamente inserido no conjunto histórico de Jaguarão (RS). (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011).

O Art Déco como forma arquitetônica


O Edifício Guaspari em seu aspecto original.
Dentro do espírito da Exposição do Centenário Farroupilha, o Edifício Guaspari, projetado pelo arquiteto auto-didata Fernando Corona, marcou a introdução da estética moderna no espaço urbano consolidado de Porto Alegre. Com suas formas horizontalizadas e seus cantos arredondados, o prédio funcionou como uma literal porta de entrada da modernidade, situada no início da avenida Borges de Medeiros. O edifício, antes de receber um vizinho de maiores proporções, era responsável por criar uma eficiente transição entre a escala mais baixa das edificações públicas (Mercado público, Paço Municipal e o entorno da Praça XV) e o paredão de prédios altos que se ergueria em sua sequência poucas décadas depois. O paradigmático edifício poderia continuar desempenhando parcialmente essa função, se não estivesse completamente coberto por uma cortina metálica inexplicável.


O Guaspari inteiramente coberto com placas metálicas. Até quando? (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

É interessante verificar a abordagem madura do Edifício Guaspari, que aplica os preceitos compositivos do Art Déco utilizando volumetria e fenestrações como elementos marcantes. Esta abordagem mais tectônica também é encontrada na residência situada na Rua Santa Terezinha, nº 200, projetada em 1932 por João Antônio Moreira Neto. Esta casa apresenta programa moderno com algumas inovações, como closet na suíte do casal, terraço, entre outras.
Este tipo de construção é também conhecido por proto-moderno, por traduzir volumetricamente as inovações estéticas da modernidade.


Casa na Rua Santa Terezinha, 200, em Porto Alegre (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

O Déco como decoração moderna

O Art Déco mais tectônico, baseado em articulações volumétricas que evocam ares modernos e “navais”, é relativamente raro em terras gaúchas. No geral, o estilo era aplicado puramente como decoração geometrizada de fachada, seguindo regras e proporções clássicas das escolas Beaux-Arts.


Residência tradicional com fachada Art Déco em São Leopoldo (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Curiosamente, a fachada de pequenas edificações coloniais, que muitas vezes já tinham recebido algum tipo de decoração eclética, foram reformadas com a decoração Art Déco, trazendo novos ares para a paisagem urbana, deixando-a no entanto intocada em sua essência.


Casario eclético e/ou colonial de Jaguarão (RS), "convertido" em Art Déco. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)

Este Art Déco meramente decorativo não é vazio de conteúdo: é preciso saber valorizar a qualidade estética das composições e, principalmente, a importância destas reformas estéticas como portadoras de simbolismo, representando uma grande alteração cultural na sociedade.


Barzinho Art Déco. No caso de Gramado (RS), trata-se de uma das únicas edificações autênticas da área central, em meio a tanto fachadismo falso enxaimel. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)

O Art Déco como influência contemporânea

Recentemente, começaram a pipocar uma série de edificações contemporâneas que apropriaram-se do vocabulário formal do Art Déco. Renovado através de materiais de revestimento contemporâneos e de diferentes tipos de esquadrias, o “estilo” volta como roupagem para salas comerciais, sedes de bancos e até mesmo edifícios comerciais e residenciais.

Tal qual múmias ressucitadas, e com a mesma premissa dos “neo-clássicos” que tem pouco de “neo”(novo) e muito menos de clássicos, esses edifícios “neo” Art Déco vem comprovar a decadência da produção arquitetônica atual. Na busca vazia por um vocabulário de ares “modernos”, alguns profissionais inocentemente apropriam-se em pleno século XXI de uma decoração “modernosa” usando curvas e jogo entre verticalidade e horizontalidade típicas do Déco, ignorando porém a dimensão cultural e o momento histórico completamente distintos. Se a superficialidade do Déco encontrava contexto na sua origem histórica, como forma de exteriorizar o sentimento de modernidade sem que houvesse amparo tecnológico e conceitual suficiente para o "moderno de fato", a aplicação destas formas em dias atuais só podem culminar num mero arremedo kitsch - bem afinado com o nosso mercado imobiliário fajuto.

Leia também:
-Arquitetura Comemorativa. A Exposição do Centenário Farroupilha - 1935. Catálogo do Projeto UniARQ - Pró-Reitoria de Extensão/UFRGS, 1999

- SEGAWA, Hugo: Arquiteturas no brasil 1900-1990. São Paulo: Ediusp, 1999. 2ª Edição.

- WEIMER, Günter: Arquitetura Modernista em Porto Alegre entra 1930 e 1945. Porto Alegre: Unidade Editorial de Porto Alegre, 1998.

- A modernidade na Av. Farrapos - Simone Pretto Ruschel

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Vivenciando os espaços em Jaguarão (RS)


Ponte internacional Mauá, entre Jaguarão (RS Brasil) e Rio Branco (Uruguai). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

A cidade de Jaguarão (RS) situa-se no sul do estado, e faz divisa com Rio Branco - Uruguai, limitada pelo Rio Jaguarão e conectada pela Ponte Internacional Mauá. Sua história e economia sempre esteve relacionada a sua situação fronteiriça, baseada nas guarnições militares e nas facilidades do transporte fluvial pelo rio Jaguarão. O longo período de decadência econômica, pelo qual boa parte da região sul do Estado tem passado, tem sido revertida aos poucos. Nesta cidade, um dos fatores é a proximidade com os free-shops na cidade uruguaia vizinha, para onde afluem diariamente centenas de brasileiros em busca dos preços mais acessíveis.


Conjunto histórico no centro de Jaguarão (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Esse rápido retorno dos olhares para Jaguarão acabou revelando o "tesouro esquecido" que a cidade ainda guarda: seus muitos conjuntos históricos urbanos. São mais de 800 edificações, a maior parte delas construídas no estilo eclético, distribuídas por todas as ruas de uma malha urbana em tabuleiro de xadrez. A inclusão da cidade no PAC das cidades históricas a partir de 2009 já oportunizou uma série de restaurações. O tombamento federal do IPHAN em 2011, embora tenha chegado após algumas perdas irreparáveis nos principais conjuntos, deve garantir continuidade do legado, o reconhecimento de sua heterogeneidade e a manutenção da escala horizontal destas áreas.

Embora tenha exemplares representativos de diversos períodos, a maior parte do patrimônio cultural jaguarense é relativo a segunda metade do século XIX, caracterizado pelos casarões ecléticos de porão alto. Esses casarões ainda são os elementos estruturadores da paisagem urbana de Jaguarão. Seu ritmo de fenestrações, a escala horizontalizada, e a implantação característica, ocupando o alinhamento dos lotes e criando uma continuidade de cheios e vazios, torna a paisagem urbana de Jaguarão bastante harmônica. Interessante verificar que mesmo um das edificações mais altas e significativas, o Theatro Esperança, buscava respeitar o padrão do conjunto, com a construção do volume mais alto recuado em relação à rua.


O Theatro Esperança, cujo volume principal se eleva recuado em relação à rua, mantendo a harmonia de escalas. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

O assoalho dos casarões ecléticos de porão alto era construído em uma cota bastante elevada em relação ao passeio público, o que criava a necessidade de um espaço peculiar no projeto: o vestíbulo. Trata-se de um pequeno hall de entrada onde fica abrigada a escadaria que dá acesso a um patamar, no qual encontram-se três portas que dão acesso a diferentes dependências da residência.
A continuidade da utilização destes vestíbulos nos dias atuais configura uma peculiaridade muito interessante. Passeando pelas ruas, é comum encontrar muitas portas abertas, convidativas, revelando um pouco do espaço interno da edificação. É uma valiosa oportunidade de conhecer alguns aspectos dos interiores das casas, como os forros e rodaforros decorados, as pinturas murais, as escaiolas, os lustres e as portas internas esculpidas em madeira. Detalhes importantes que normalmente passam despercebidos e que são difíceis de apreciar mesmo em grandes cidades históricas, já que a arquitetura civil privada costuma ser vista apenas por seu aspecto externo.

Em Jaguarão, estes vestíbulos abertos acabam configurando um curioso caso de espaço coberto "público-privado". Funcionam como uma continuidade das calçadas, visto que estas portas abrem de frente para elas, diretamente para a rua. As campainhas, por exemplo, estão situadas geralmente na parte de dentro destes vestíbulos, e são acessadas após a subida das escadarias. Em prédios de propriedade da administração municipal, a caracterização deste espaço como de uso público é ainda mais marcante: encontramos até mesmo telefones ("orelhões") instalados nesta parte interna da residência.



Alguns vestíbulos de casarões ecléticos de porão alto em Jaguarão (RS). (fotos: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Desta forma, a beleza de Jaguarão é complementada pela oportunidade de apreciação e vivência de espaços interiores, o que torna a experiência de passear pelas ruas da cidade ainda mais intensa. Além da incomparável paisagem urbana característica, vivenciada através da apreciação das fachadas e das paisagens por elas constituídas, o acervo de Jaguarão ainda é peculiar por oportunizar o conhecimento do tratamento dos espaços interiores mesmo de edificações particulares.





Portas abertas em prédios ecléticos de porão alto em Jaguarão (RS). (fotos: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Valorizando o passado e pensando Jaguarão para o futuro


Antiga Enfermaria Militar, futuro Centro de Interpretação do Pampa - prédio tombado pelo IPHAE-RS. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Com poucas mas bem planejadas iniciativas, Jaguarão poderá vir a se tornar um importante destino para o turismo cultural no Rio Grande do Sul. O apelo do turismo de compras no município vizinho pode à primeira vista não parecer compatível com a visitação cultural, mas já mostrou-se válido para o reconhecimento da cidade. O interesse da administração pública local em promover a cultura e a valorização do patrimônio histórico do município é sem precedentes, e certamente trará bons frutos, como o futuro Centro de Interpretação do Pampa, projetado pelo escritório Brasil Arquitetura. Este poderá se tornar mais uma grande referência na arquitetura do Rio Grande do Sul, assim como tornou-se o Museu do Pão de Ilópolis, dos mesmos autores.


Mercado Público de Jaguarão (RS) - (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)


Estação Ferroviária de Jaguarão (RS) (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)

Agora que está devidamente protegido o centro histórico, além da restauração dos bens nele situados, como o Mercado Público, a cidade ainda tem pontos isolados importantes para pensar e valorizar. Não pode ser destinada ao abandono a Estação Ferroviária e seu entorno, que curiosamente não integra nenhuma das áreas de interesse cultural traçadas, e nem aparece nos roteiros culturais. Situada no limiar da malha urbana em uma área aberta que tem tanto potencial quanto risco de ser mal utilizada, precisa ser pensada com urgência. Não podemos esquecer que a especulação imobiliária foi expulsa do centro histórico pelo tombamento, mas pode ser transferida para outros locais de forma destrutiva.


A quadra em frente a orla do Rio Jaguarão encontra-se bastante degradada. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)
A vista da quadra que faz frente à orla da cidade, visível também a partir da ponte, encontra-se bastante danificada pela desfiguração das fachadas. Essa degradação é responsável por uma péssima primeira impressão do local, mas felizmente, é reversível. O ritmo de fenestrações pode ser recuperado, pois foi parcialmente mantido ou pode ser encontrado atrás do reboco.
De qualquer forma, Jaguarão tal como se encontra já é parada obrigatória para qualquer turista que queira vivenciar um pouco do patrimônio cultural gaúcho.