A introdução da arquitetura moderna no Brasil foi mais lenta, gradual e pluralizante do que pode parecer num primeiro momento. No “pacote” de modernização da arquitetura, o estilo Art Déco desempenhou um papel importantíssimo, trazendo para a paisagem urbana exemplares com inéditos ares renovados, inaugurando a estética do moderno, em contraponto ao estilo academicista baseado no clássico que era praticado até então.
Centro de Saúde de Novo Hamburgo (RS), da década de 40. (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)
O Surgimento do Art Déco
No início do século XX, as evoluções tecnológicas, principalmente da indústria, ocasionavam o sentimento de pertencer a uma época “moderna”, o que criou terreno para o surgimento de diferentes vertentes de arquitetura. As vanguardas arquitetônicas que vieram a gerar o que conhecemos como “Movimento Moderno”, porém, vinham repletas de uma carga ideológica mais complexa. Essas inovações conceituais e sociais, ideais de racionalização e o pleno uso das inovações técnicas não supriam a demanda da sociedade, que esperava uma arquitetura nova, mas com uma estética moderna de forma mais “festiva” e sem maiores pretensões.
Edifício Art Déco em Pelotas (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)
O Art Déco encontra aí seu terreno, caracterizando-se como uma “decoração moderna”– uma arquitetura nova preocupada apenas com a estética, com as aparências, sem entrar na complexidade de uma revolução no modo de conceber a arquitetura. Seu surgimento é marcado pela Exposição Internacional das Artes Decorativas e Industriais Modernas de 1925, na França. A partir daí, foi difundido no mundo inteiro, sendo extensamente adotado nos Estados Unidos.
O antagonismo entre as vanguardas do movimento moderno, que buscavam uma revolução mais profunda no modo de morar e mesmo de conceber as cidades; e o descompromissado Art Déco, que não apresentava rompimento considerável com a arquitetura pretérita, foi inevitável. Le Corbusier em 1930 definia o Art Déco como "Este estilo 1925, besta, idiota, raplaplá que faz os medíocres ficarem babando de felicidade."
Cine Globo, em Três Passos (RS). A influência do Art Déco foi praticamente global, onde houvesse aglomeramentos urbanos. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)
O confronto repetiu-se em terras brasileiras a partir dos anos 30, quando a paisagem urbana nacional começa a apresentar as contradições típicas desta época, que alinhavam lado a lado edificações de vertentes beaux-arts (ecletismo tardio), neo-coloniais, modernistas de vanguarda, Art Déco e outras tendências minoritárias. Ao contrário do movimento moderno, que tinha pretensões sociais, não houve um "movimento Art Déco": o estilo era adotado conforme a conveniência, por arquitetos e construtores que também praticavam o neo-colonial espanhol, o eclético tardio, etc.
Antigo Bar Olá Maracanã: Ares modernos no ambiente tradicional de Hamburgo Velho, em Novo Hamburgo (RS).
O Art Déco no Rio Grande do Sul
Em terras gaúchas, apesar da existência de exemplares anteriores, a introdução estilo Art Déco é marcado pela Exposição do Centenário da Revolução Farroupilha em Porto Alegre, em 1935. A grande maioria dos pavilhões temporários construídos no atual Parque Farroupilha (que herdou o nome e parte do traçado da exposição) aplicava este estilo.
Os pavihões da Exposição do Centenário Farroupilha, a grande maioria em Art Déco. (fonte: Arquitetura Comemorativa: Exposição do Centenário Farroupilha)
A partir dessa exposição, o estilo difundiu-se de forma rápida por todos os recantos do estado. O gosto “moderno”, a busca por linhas simples e geometrizantes, com a articulação eficiente da horizontalidade com a verticalidade, veio a calhar com o início da verticalização das cidades e com a adoção de uma nova referência cultural: os Estados Unidos. A imitação do american way of life, difundido através do cinema e das publicações, sacramentou o estilo Art Déco. Sua influência foi por algum tempo quase que regra na arquitetura oficial, onde não encontrava a concorrência das vertentes neo-coloniais, que a nível local limitaram-se a arquitetura residencial. Os novos programas que surgiam, como os cinemas, também foram construídos majoritariamente no estilo.
Grupo Escolar Joaquim Caetano da Silva, em Jaguarão (RS)
São muitos os exemplares de arquitetura oficial que passaram a difundir-se por todo o Brasil, sendo os mais difundidos, as sedes de agências dos Correios e Grupos Escolares Estaduais. Estes passavam a apresentar a arquitetura Art Déco quase como regra. As edificações públicas municipais deste período também são normalmente influenciadas por este estilo, sendo as obras municipais de Porto Alegre exemplares bastante típicos, projetados pelo Arq. Cristiano de La Pax Gelbert.
Grupo Escolar Visconde de São Leopoldo, em São Leopoldo (RS)
Típico deste estilo foi o revestimento com reboco de cimento penteado – “cirex”, com seu característico brilho quando nele incide a luz solar. Estes revestimentos devido a porosidade são de fácil degradação, ficando com aspecto sujo da fuligem que absorvem, e são pintados sem critérios com tintas comuns.
Prédio Art Déco harmonicamente inserido no conjunto histórico de Jaguarão (RS). (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011).
O Art Déco como forma arquitetônica
O Edifício Guaspari em seu aspecto original.
Dentro do espírito da Exposição do Centenário Farroupilha, o Edifício Guaspari, projetado pelo arquiteto auto-didata Fernando Corona, marcou a introdução da estética moderna no espaço urbano consolidado de Porto Alegre. Com suas formas horizontalizadas e seus cantos arredondados, o prédio funcionou como uma literal porta de entrada da modernidade, situada no início da avenida Borges de Medeiros. O edifício, antes de receber um vizinho de maiores proporções, era responsável por criar uma eficiente transição entre a escala mais baixa das edificações públicas (Mercado público, Paço Municipal e o entorno da Praça XV) e o paredão de prédios altos que se ergueria em sua sequência poucas décadas depois. O paradigmático edifício poderia continuar desempenhando parcialmente essa função, se não estivesse completamente coberto por uma cortina metálica inexplicável.
O Guaspari inteiramente coberto com placas metálicas. Até quando? (Foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)
É interessante verificar a abordagem madura do Edifício Guaspari, que aplica os preceitos compositivos do Art Déco utilizando volumetria e fenestrações como elementos marcantes. Esta abordagem mais tectônica também é encontrada na residência situada na Rua Santa Terezinha, nº 200, projetada em 1932 por João Antônio Moreira Neto. Esta casa apresenta programa moderno com algumas inovações, como closet na suíte do casal, terraço, entre outras.
Este tipo de construção é também conhecido por proto-moderno, por traduzir volumetricamente as inovações estéticas da modernidade.
Casa na Rua Santa Terezinha, 200, em Porto Alegre (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)
O Déco como decoração moderna
O Art Déco mais tectônico, baseado em articulações volumétricas que evocam ares modernos e “navais”, é relativamente raro em terras gaúchas. No geral, o estilo era aplicado puramente como decoração geometrizada de fachada, seguindo regras e proporções clássicas das escolas Beaux-Arts.
Residência tradicional com fachada Art Déco em São Leopoldo (RS). (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2011)
Curiosamente, a fachada de pequenas edificações coloniais, que muitas vezes já tinham recebido algum tipo de decoração eclética, foram reformadas com a decoração Art Déco, trazendo novos ares para a paisagem urbana, deixando-a no entanto intocada em sua essência.
Casario eclético e/ou colonial de Jaguarão (RS), "convertido" em Art Déco. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2010)
Este Art Déco meramente decorativo não é vazio de conteúdo: é preciso saber valorizar a qualidade estética das composições e, principalmente, a importância destas reformas estéticas como portadoras de simbolismo, representando uma grande alteração cultural na sociedade.
Barzinho Art Déco. No caso de Gramado (RS), trata-se de uma das únicas edificações autênticas da área central, em meio a tanto fachadismo falso enxaimel. (foto: Jorge Luís Stocker Jr./2009)
O Art Déco como influência contemporânea
Recentemente, começaram a pipocar uma série de edificações contemporâneas que apropriaram-se do vocabulário formal do Art Déco. Renovado através de materiais de revestimento contemporâneos e de diferentes tipos de esquadrias, o “estilo” volta como roupagem para salas comerciais, sedes de bancos e até mesmo edifícios comerciais e residenciais.
Tal qual múmias ressucitadas, e com a mesma premissa dos “neo-clássicos” que tem pouco de “neo”(novo) e muito menos de clássicos, esses edifícios “neo” Art Déco vem comprovar a decadência da produção arquitetônica atual. Na busca vazia por um vocabulário de ares “modernos”, alguns profissionais inocentemente apropriam-se em pleno século XXI de uma decoração “modernosa” usando curvas e jogo entre verticalidade e horizontalidade típicas do Déco, ignorando porém a dimensão cultural e o momento histórico completamente distintos. Se a superficialidade do Déco encontrava contexto na sua origem histórica, como forma de exteriorizar o sentimento de modernidade sem que houvesse amparo tecnológico e conceitual suficiente para o "moderno de fato", a aplicação destas formas em dias atuais só podem culminar num mero arremedo kitsch - bem afinado com o nosso mercado imobiliário fajuto.
Leia também:
-Arquitetura Comemorativa. A Exposição do Centenário Farroupilha - 1935. Catálogo do Projeto UniARQ - Pró-Reitoria de Extensão/UFRGS, 1999
- SEGAWA, Hugo: Arquiteturas no brasil 1900-1990. São Paulo: Ediusp, 1999. 2ª Edição.
- WEIMER, Günter: Arquitetura Modernista em Porto Alegre entra 1930 e 1945. Porto Alegre: Unidade Editorial de Porto Alegre, 1998.
- A modernidade na Av. Farrapos - Simone Pretto Ruschel
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Parabéns, gostei muito, principalmente o último item. Também o fachadismo falso enxaimel de Gramado, para turista ver. Por isso pretendo, algum dia, REstaurar e não REformar minha casa, legitimo estilo Art Déco.
ResponderExcluirParabéns pelo belo trabalho!Gostei muito do blog.Sou estudante de arquitetura da Unisc e gosto muito de história e preservação do patrimônio.Muito bem elaborado o blog e muito rico em informações os textos.Deixo aqui o convite para visitarem meu blog, que fala sobre história e arquitetura: http://historiaearquitetura.blogspot.com/
ResponderExcluirGrande Abraço
Eder Santos
adorei o topico do Ed Guaspari. Nunca o tinha visto sem sua carapuça de metal!
ResponderExcluirExcelente post! Muito explicativo.
ResponderExcluirÉ interessante notar como nas áreas centrais de Porto Alegre existem diversos prédios do tipo decó e muitos estão encardidos pelo tempo =(
O Guaspari tinha que se transformar na Piccadilly Circus de POA.
ResponderExcluirQuanto ao comentário sobre Gramado. O que é bonito e agradável deve ser estimulado, mesmo que não represente alguma escola arquitetônica.
Nos finais de semana, por que será que as pessoas vão a Gramado, e não ficam passeando na Borges de Medeiros?
Basta de cinza. Basta de tristeza.