O modelo, no entanto, está longe de estar completamente testado e em funcionamento. Inúmeros casos demonstram a fragilidade dos Conselhos Municipais, acometidos por incompreensões, distorções legais ou até mesmo, problemas na composição do próprio colegiado.
Este pequeno artigo visa problematizar algumas questões relativas ao funcionamento dos conselhos municipais de patrimônio cultural, construído a partir de experiências e relatos colhidos em diversos municípios. Busca trazer alguns elementos e reflexões, sem a pretensão de esgotar o tema, que certamente merece debates bem mais aprofundados.
Conselhos Municipais de Patrimônio Cultural como ferramenta de participação
O patrimônio cultural é um tema em constante dilatação e redimensionamento. É um campo de eternas disputas conceituais e metodológicas. Absorvendo este debate, a própria Constituição Federal de 1988 reconhece que o tema deve ser construído em conjunto com a comunidade:
" Art. 216. § 1º
- O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas
de acautelamento e preservação."
São inúmeras as maneiras de promover a participação da comunidade, algumas mais efetivas, outras meramente figurativas. A criação de um Conselho Municipal de Patrimônio Cultural com participação da comunidade nos parece uma das ferramentas mais efetivas para promover a participação direta da comunidade nas decisões que envolvem o patrimônio cultural do município.
Um dos pontos mais problemáticos a respeito dos Conselhos Municipais de Patrimônio Cultural diz respeito a composição do Conselho. Como definir quais e quantos cidadãos e entidades tem legitimidade para compor o Conselho?
A primeira questão que se impõe é a origem das vagas. É evidente que o poder público precisa estar presente, sendo ele o principal responsável legal pela execução das demandas que serão debatidas. No entanto, a presença maciça de vagas destinadas ao poder público, em detrimento às vagas destinadas à comunidade no geral inviabilizam um debate verdadeiramente democrático e igualitário.
Desnecessário lembrar que no sistema político atual, em grande parte das cidades, temos uma relação bastante promíscua dos poderes públicos com empresas da construção civil e do ramo imobiliário por conta dos financiamentos de campanha. No geral, as vagas destinadas a Prefeitura estão suscetíveis exatamente a este assédio do poder econômico, motivo pelo qual é problemático que a maioria da composição de um Conselho tenha vinculação direta ou mesmo indireta com o poder público.
Um Conselho de Patrimônio Cultural que apresente mais de 1/2 de vagas destinadas de forma direta ou indireta ao poder público, não cumpre sua função de promover a participação da comunidade. Acaba servindo apenas como instrumento de legitimação de decisões já tomadas pelo poder público, revestindo estas decisões de uma máscara democrática. Desta forma não haveria necessidade da composição de um Conselho.
Os "conselhões"
Temos visto em grande parte dos casos, a constituição em lei de conselhos gigantescos, com dezenas de vagas, em que praticamente toda e qualquer associação, ong, autarquia pública e sindicato do município garante sua vaga no Conselho de Patrimônio.
É importante destacar que a procura por este tipo de Conselho, quando em funcionamento, é gigantesca, inviabilizando uma composição muito exagerada que inviabiliza a frequência de reuniões com quórum suficiente.
A Casa Faller de Campo Bom, inventariada em 1996, foi considerada sem valor cultural por decisão de conselho municipal. A composição deste conselho é bastante duvidosa, pois não prevê vagas para a sociedade civil organizada pela preservação.
Quem deveria participar do Conselho?
Quanto às entidades participantes de um Conselho, cabe retomar que a Constituição Federal Art. 216 convoca a comunidade para PROMOVER e PROTEGER o patrimônio cultural brasileiro. Uma disposição tão simples deveria, ao nosso ver, servir de norte para a seleção. A entidade em questão tem como objetivo promover e proteger o patrimônio cultural? Ou, apesar de finalidades afins, efetivamente em sua prática promove e protege o patrimônio local?
Muitas entidades podem ter representatividade e importância para o município, mas não necessariamente tem como contribuir num Conselho de Patrimônio Cultural, que tem acima de tudo, essa tarefa constitucional de promover e proteger o patrimônio cultural local. Para que o Conselho e a administração pública travem debates e diálogos com todos os setores envolvidos na construção da cidade, não se demanda necessariamente uma vaga em um Conselho! Tais entidades, autoridades e cidadãos podem ser convocados para reuniões e audiências, consultados por ofício ou tantas outras formas de participação que não implicam, necessariamente, uma cadeira no colegiado.
Destaca-se, então, a completa ineficácia da destinação de vagas em um Conselho de Patrimônio Cultural para associações comerciais, industriais, profissionais, autarquias públicas de fiscalização profissional, OAB, Corpo de Bombeiros e tantas entidades que curiosamente vemos com frequência figurar na nominata de Conselhos, quando não atuam diretamente na área. A não ser que, efetivamente, no caso do município, estejam ativamente promovendo e protegendo o patrimônio cultural local. Neste caso, é muito proveitoso que constem na nominata, contanto que, no caso de autarquias e quaisquer entes ligados ao poder público, figurem na composição enquanto vagas destinadas ao poder público.
Desastrosa reforma aprovada em São Leopoldo (RS) na Casa Wolffenbüttel. Laudo técnico do IPHAE apontou diversas inconsistências do projeto, no entanto este laudo foi ignorado pelo Conselho e até mesmo pela promotoria do MP.
Desnecessário frisar que setores vinculados a construção civil - como sindicatos patronais e afins, vinculados diretamente ao setor da construção civil e imobiliário - não tem qualquer contribuição possível enquanto ocupantes de cadeira em um Conselho. O setor imobiliário tem vinculação direta com o tema, mas da forma inversa, como vemos na prática do dia a dia no meio urbano. Uma soma de metade das vagas já relativas ao poder público, mais uma vaga voltada ao setor imobiliário, resulta na maioria versando o direcionamento do setor da construção civil - marginalizando decisões da comunidade e tirando a legitimidade do Conselho.
É desejável que estes setores estejam em diálogo constante com os Conselhos, participando das reuniões e levando suas demandas. Mas sua participação direta nos parece um contrassenso. Assim como qualquer outro setor da economia, que tem seus objetivos específicos que são legítimos, mas não versam pontualmente pela promoção e preservação.
Efetivando a participação
Parece desejável que haja formas mais acessíveis de integrar um Conselho de Patrimônio Cultural. A destinação de vagas a entidades pré-constituídas é bastante prática, mas burocrática para possibilitar a participação do cidadão comum.
A destinação de vagas comunitárias através de eleições públicas abertas e diretas pode ser uma solução interessante. O cidadão eleito pode ter mandato por tempo limitado e eventualmente ser trocado por decisão comunitária, organizada em uma espécie de fórum popular.
É importante, no entanto, ressaltar a importância de legítima vinculação e atuação com o tema. As ferramentas de participação precisam ser testadas e retestadas para que se conheçam seus efeitos e suas fragilidades, pois no geral são de fácil coptação pelos interesses econômicos que atuam na cidade.
Casa Koch, em processo de tombamento nacional foi demolida em Hamburgo Velho - Novo Hamburgo (RS), sob a alegação de que uma rachadura inviabilizava sua restauração. A demolição foi aprovada pela Comissão, colegiado que emula um Conselho naquele município, ainda que essa não fosse sua atribuição legal. Apesar de grande consternação na comunidade e de todas ilegalidades, o caso foi arquivado pela promotoria do Ministério Público.
Conselhos de Patrimônio x Aprovação de Projetos
Nos parece que uma das grandes confusões geradas pela falta de maior especificidade na Constituição, Estatuto das Cidades e afins, é a destinação de Conselhos Municipais de Patrimônio enquanto simples instância de aprovação de projetos.
Primeiramente, cabe destacar que grande parte do Conselho, em nenhum caso, terá formação técnica adequada para avaliação de critérios básicos de preservação. Quanto menos conhecimentos relativos a construção civil. Não há qualquer sentido na análise e aprovação de memoriais descritivos e plantas técnicas por parte apenas dos Conselhos.
Por este motivo, análises técnicas deveriam evidentemente ser realizadas por equipes técnicas comprovadamente qualificadas. O parecer técnico pode ser ótimo subsídio ao debate dos Conselhos, que devem participar de todos os aspectos. É importante resguardar a autonomia dos Conselhos como
instância deliberativa, evitando a sobreposição da equipe técnica sobre o
colegiado. O equilíbrio é fundamental.
Um exemplo simplificado do funcionamento que nos parece mais cabível: Caberia a uma equipe técnica estudar um imóvel, estabelecendo seus valores e sugerindo uma classificação. Caberia ao conselho debater essa classificação, frente às informações atribuídas pelo técnico, deliberando a classificação da edificação. Caberia a equipe técnica analisar um projeto de intervenção nos aspectos técnicos. Caberia ao Conselho avaliar o impacto deste projeto, munido das considerações da equipe técnica. Caberia a equipe técnica, novamente, intermediar a aprovação de projetos entre Conselho e o proprietário/profissional envolvido na obra. Caberia a equipe técnica acompanhar a execução das obras. Caberia ao Conselho acompanhar e aconselhar a equipe técnica. Etc.
Sabemos que é impossível para todos os pequenos municípios a contratação de equipe técnica qualificada. Como existe co-responsabilidade do Estado e União, esperar-se-ia que as equipes técnicas dos Institutos de patrimônio pudessem prestar esse apoio técnico, que são sua responsabilidade legal. No entanto, desamparados em número de profissionais alocados e sobrecarregados de demandas das mais diversas, estes setores raramente são procurados para estes fins. No caso do IPHAN, o órgão historicamente não tem cumprido esse papel, recusando-se a deliberar sobre bens não tombados a nível federal - ainda que tal alegação seja inconstitucional.
Responsabilidade dos conselheiros
O Conselheiro, ainda que seja voluntário, exerce cargo público. Como lembra José Rodrigues, pode ser responsabilizado como funcionário público:
"É
preciso também que o membro do colegiado esteja consciente de suas
responsabilidades perante a lei penal. Isto porque, segundo o artigo 327
do Código Penal, ele é considerado funcionário público, eis que exerce
uma função público, a de conselheiro,
embora de caráter transitório e sem remuneração. Destarte, dependendo
das atitudes que tomar, o conselheiro, na condição de funcionário
público, poderá ser sujeito ativo dos delitos inscritos no código
penal."
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Importância e responsabilidade dos conselhos municipais do patrimônio cultural in Mestres e Conselheiros - Manual dos agentes do patrimônio cultural. Belo Horizonte: IEDS, 2009.
RODRIGUES, José Eduardo Ramos. Importância e responsabilidade dos conselhos municipais do patrimônio cultural in Mestres e Conselheiros - Manual dos agentes do patrimônio cultural. Belo Horizonte: IEDS, 2009.
A conduta do Conselheiro pode, portanto, ser questionada, sempre que não verse pela promoção e preservação do patrimônio cultural brasileiro. É comum vermos a sobreposição de interesses não legítimos povoando os conselhos, de forma a torná-los mais "eficientes" para determinados setores. Por este motivo, é recomendável que cada conselheiro anexe junto às atas seu parecer individual a respeito das pautas mais importantes. Desta forma pode se resguardar de ser responsabilizado por decisões que, ainda que tomadas por maioria, não concorda.
Ainda, o Conselheiro não pode agir como um consultor da sua área de especialidade. O Conselho é uma instância colegiada para tomada de decisões importantes, das quais todos devem participar e, uma vez que participam, são co-responsáveis. Um historiador que só opina em questões históricas, um arquiteto que só opina em questões técnicas da obra está se omitindo no seu papel de conselheiro.
Representatividade dos Conselheiros
Em municípios pequenos, muitas vezes o Conselho de Patrimônio acaba adquirindo conotação de sociedade civil organizada, militando pela preservação. Cumprem a lacuna da não existência de movimentos organizados pela preservação, o que nem sempre é proveitoso, uma vez que confunde esferas de atuação e a própria diferenciação entre o público e o privado.
Os Conselhos são colegiados, e cada conselheiro pode ter posicionamentos e opiniões diferentes para cada assunto. Apresentar-se como "representante do Conselho" é bastante duvidoso, mesmo para Presidentes eleitos - uma vez que opiniões somente podem ser emitidas pelo colegiado quando este efetivamente se reúne com quórum e debate os temas. Cada entidade e cidadão dentro de um Conselho representa sua entidade/comunidade, e deveria manter sua independência. Não nos parece nada desejável que o Conselho abrigue apenas unanimidade.
É comum que se acredite que o Conselho seja o espaço para o embate entre preservacionistas e proprietários ou interessados nas demolições. Tal situação subestima ou mesmo, escamoteia a principal função dos Conselhos. O Conselho serve para cumprimento de deveres constitucionais do poder público e da comunidade, que não deveriam ser dificultados por conflitos inócuos e tacanhos.
A diversidade de opiniões sempre será uma característica de colegiados democráticos, ainda que o Conselho deva reunir apenas cidadãos e entidades interessados na "promoção e preservação" do patrimônio cultural. As subjetividades ligadas ao tema do patrimônio cultural são muitas e certamente influenciam nas decisões.
Os Conselhos Municipais, devidamente formatados com uma composição equilibrada entre poder público e sociedade civil, quando contemplam entidades e cidadãos que promovem e protegem o patrimônio local, podem se tornar grandes propulsores do desenvolvimento das políticas de preservação do município.
Por isto, é importante que haja a dinâmica necessária para a inclusão de novos bens, imateriais e imateriais, nas listas de preservação e tombamento, tornando o processo o mais participativo e fluído possível. O Conselho deveria conhecer as demandas da cidade e encontrar possíveis soluções.
O Conselho também deveria ter a gerência sobre um Fundo Municipal de Patrimônio Cultural, abastecido por origens diversas (inclusive multas ambientais ou culturais). Desta forma pode adquirir certa autonomia para desenvolvimento de algumas ações e contratação de determinados trabalhos.
A grande maioria dos municípios sequer constituiu um Conselho Municipal de Patrimônio Cultural. Por mais problemática que seja a trajetória, é através da constatação dos eventuais equívocos que a situação pode evoluir. Garantir crescentemente maior transparência e participação comunitária em todo o processo nos parece ser um direcionamento interessante, capaz de evoluir esta ferramenta de preservação.
Excelente e oportuno.
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